quarta-feira

FELIZ NATAL, O %$&#@!




Nesta época do ano, basta eu ouvir as musiquinhas de natal estilo Broadway-Disney para sentir despertar em mim os mais profundos sentimentos. Sentimentos assassinos.
Não sei você, mas eu chego ao final do ano só o bagaço. O “pó da bactéria”, como diz uma amiga. Quando surge a primeira gôndola de panetone no supermercado, já me sinto ameaçado. O primeiro sorteio de amigo secreto vaticina o fim. Dá até taquicardia ao ouvir o ecoar do mantra “hoje é um novo dia, de um novo tempo que começou...”. Desde minha infância, os anjos do apocalipse, quer dizer, do fim de ano, Roberto Carlos e Papai-Noel, como dupla sertaneja, sempre vêm juntos. Com as mesmas músicas. Com as mesmas roupas, sempre na mesma cor. Quase tudo na mesma, porque hoje o Papai-Noel parece mais novo do que seu colega.
Todos os sinais dessa época conspiram para me dizer: acabou e eu não dei conta da listinha de 31 de Dezembro passado. Não deu conta nem das contas do Réveillon passado. Os quilos, que nem teve tempo de perder, logo ganharão novos coleguinhas. Novas listas inconclusas de final de ano se aproximam.
Quem vive em São Paulo ainda tem direito a um presente coletivo adicional. O trânsito, que todo mundo passa 11 meses dizendo que não pode ficar pior, piora em Dezembro. Para fugir, fui almoçar em um restaurante judaico. Ilusão. Diante da enorme fila de espera, indaguei “Seu Baron”, o dono. Com seu sotaque meio Rio, meio Budapeste, explicou: “é Natal, main filho, no ter jeito”. Natal em São Paulo congestiona até mesquita. A prefeitura estuda fazer rodízio de papai-noel, pelo final da placa do trenó, que deve estar com inspeção veicular em dia:-)

Tudo parece cheio e falso. Árvores com menos vida do que fósseis. Neves acrílicas que sobreviverão a qualquer aquecimento global. Luzes de um verde mais artificial do que o da camisa (e o futebol:-) do Palmeiras. Bolas mil, que desconfio brilham de tão radioativas. Nesta época tenho a impressão de que o país que mais celebra o natal é a China. O Natal, um dia foi Made in Palestina, hoje com certeza é Made in China. Natal Pilata, né?
Neste espírito, semana passada, estava encarcerado neste trânsito infernal, digo, natalino de Sampa. Lia num jornal, daqueles gratuitos, que milhares de crianças foram abandonadas no deserto do Saara porque suas mães tiveram que emigrar à força, expulsas pela indústria de petróleo e pela guerra. Voltei para o celular e comecei a digitar um email, que reduziria para apenas uns 999 os pendentes. No texto, tentava convencer meu chefe de que não dá para fazer chover no Saara, pelo menos não com esse orçamento. Mas, minha cabeça estava na listinha não cumprida de presentes não comprados, nos problemas não superados, nas ausências.

Naquele momento, uma senhora com uma pele mostrava que parecia contar uma história, passava por entre os carros encalhados. Anunciava água, refrigerantes. Vendia uma pausa. Abri o vidro e supliquei por uma salvadora latinha de Coca-Zero. Foi quando vi, na calçada em frente a uma loja, um Papai-Noel de sorriso tão autêntico quanto sua barba de algodão. Contato visual feito. Talvez por medo do que visse nos meus olhos, ele me acenou e disse: “Feliz Natal”. Vi o congestionamento ao redor, pensei na chuva no Saara, no orçamento, nos órfãos do petróleo, no terninho azul do Roberto Carlos, nas listinhas, etc. Só consegui imaginar uma resposta: “Feliz Natal, o &*%$#@!”. Paro a frase por aqui, pode ter criança lendo este texto :-)

Já que a boca nunca diria este desaforo (medo de minha avó se levantar da tumba e lavar minha boca com sabão:), a cara deve ter se encarregado da mensagem. Porque, quando voltei ao planeta Terra, vi a senhora, parada com a latinha na mão, com uma expressão de que não entendeu nada. Ou entendeu tudo:
-“3 Reais e um sorriso.

Contrariando o que meu pai dizia, paguei sem regatear. Recebi uma lata de coca-zero e um “Feliz Natal” de troco. Mais um. Mas, ao invés da resposta atravessada, senti a vontade, talvez quase a obrigação de dizer um envergonhado e surpreendentemente honesto:
- “Feliz Natal para você também”.

O trânsito seguiu moroso. Tempo para pensar. No meio de tanto “Feliz Natal” pilata, como a barba do Papai-Noel, o que meu inesperadamente honesto “Feliz Natal” desejava àquela senhora? Na minha mão, a latinha de coca foi meu oráculo inusitado. Zero. O Natal Zero, o original. O Natal Paradigma. O Natal que aconteceu sem que ninguém se desse conta de que vivia um Natal feliz. Qual é a felicidade do Natal Zero?

Os protagonistas do Natal Zero são viajantes involuntários. Submetidos aos caprichos de Herodes, o rei fantoche. O líder é um Rei falso, Rei Pilata. Submisso diante do império Romano. Exige submissão, coloca em fila, conta e finge controlar sua pequena população de quase-súditos. Só ataca quem é fraco. Rei, cuja única campanha militar foi contra recém-nascidos.

José e Maria submetidos injustamente. Indefesos. Época de frio. Gravidez avançada. Sem hotel adequado. Nem SUS. Longe de casa. Mal acomodados. Sozinhos (nota: para um judeu qualquer grupo com menos de 12 é solidão:-). Não há menção a nenhum banquete. Os presentes foram poucos e chegaram atrasados. Pelos parâmetros de hoje, o Natal Zero foi uma pobreza. E foi feliz.


Feliz porque a criança irrompia no meio do império e seus títeres. Feliz porque o Menino vinha para inverter os parâmetros. Para anunciar uma nova ordem, onde o maior é pequeno. O rico é o que não possui nada. O louco é o verdadeiro sábio. O sujo é mais limpo. E os que se proclamam limpos são podres por dentro. O que perde, acha. O que busca a paz é o verdadeiro corajoso. O estábulo é o centro e o palácio a periferia da felicidade. Ordem onde Deus se manifestava longe do templo, revelava a pastores e magos o que os sacerdotes não viam.

Minha irritação não é com a festa, é com o natal pilata. O natal anti-Zero. O natal do acúmulo, do consumo e não de doação. Natal da Economia que esmaga em nome da racionalidade do lucro; do poder que, até hoje, persegue e mata crianças; que inventa, acentua e reafirma desigualdades. Um natal que sacraliza o consumo que consome pessoas e ao próprio planeta. Um natal que endeusa o palácio, o poder e toda agenda que o Natal Zero veio para esculhambar.

Olho o presépio aqui de casa, feito por uma comunidade indígena peruana, onde o Menino Jesus tem olhinhos puxados e ao invés de uma vaca, uma lhama posa ao lado dele. A cena reflete a simplicidade. Nao há adornos. Nada supérfluo. Vejo a felicidade do Natal Zero. A felicidade que , como um menino no meio do estábulo, irrompe e interrompe os “impérios romanos ou não”, os “herodes” com seus palácios e polícias, os problemas do último e-mail, a agenda por cumprir.

Meu “Feliz Natal” é um desejo de que possamos nutrir a Esperança que reorganiza o horizonte, o perdão que reedita as relações. Um tempo de reforçar os laços que libertam, o brilho que acolhe, onde a presença sobrepõe presentes. Um Natal da liberdade de quem segue a estrela e se prostra diante do Menino.

Meu Desejo é um Natal com menos. Menos tudo o que não importa. 365 dias de Feliz Natal Zero para você!

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Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes

PS- Esta mensagem não foi patrocinada pela Coca-Cola Zero kkk”.

terça-feira

LEMBRANÇAS MARFINESAS

Era o dia de voltar para casa. O calor refletido no turquesa da baia da Abdijan dizia bom dia para todos os hospedes do hotel. Até para os que não queriam. A cortina era fraca demais para um sol que contradizia o relógio, onde ainda aparecia 05h50min. Abdijan dispensa despertadores.
Avenidas largas sonhos de governos megalomaníacos e suas palmeiras, combinavam com rua de um passado colonial recente. Transplante europeu deslocado. A herança do colonizador, colonizada. Gente colorida e suas conversas sempre empolgadas. Sorrisos e protestos evidentes. Tudo muito evidente como convém. Os tambores sincronizam o coração. A piada e o sorriso sempre presentes, mesmo ou principalmente, na tragédia. O oceano não separa os fortes traços de culturas africanas que vieram da Guiné, Mina e de toda a região oeste africana.  Traços que são, assumidamente ou não, o centro do que chamamos de cultura brasileira. Para um brasileiro, Abdijan era como a casa de um familiar.  
Era meu último dia de uma visita de alguns dias, por estradas muito mais bem cuidadas que as de grande parte do interior brasileiro. Pequeno, pacífico e com uma distribuição fundiária quase em padrões europeus, a Costa do Marfim desafiara meu pessimismo em relação às possibilidades africanas. Vivia um período de democratização, depois de mais de uma década de um único presidente. Se as Democracias talvez se pareçam, as ditaduras são sempre singulares. Esta tinha um parlamento, um primeiro-ministro eleitos, mas um só partido. Dispensava brutais forças de Inteligência e garantia sustentação por uma rede de escolas públicas que chegava a toda comunidade e era o ponto tanto de controle como de distribuição de benesses sociais. Um líder carismático, libertador e herói nacional. Alias eleito facilmente presidente, nas primeiras eleições pluripartidárias e fiscalizadas.
As escolas surgidas para controlar haviam se transformado em núcleos comunitários. Cada comunidade, por menor que fosse, tinha sua organização. Jovens, oriundos da primeira geração alfabetizada, chefiavam conselhos comunitários. Era estimulada a crítica a tudo, desde que não ao presidente. Esta mistura de estabilidade de um regime de partido único, em um país que já era multipartidário, a liberdade empreendedora, um povo aberto a estrangeiros e um Estado que não insistia em regular os detalhes da vida, atraiu investimentos de toda a parte. Também fizeram da Costa do Marfim um ponto de encontro e diálogo diplomático para países vizinhos então e, em parte, até hoje em crise.
Esse ambiente, a riqueza mineral (presente em quase toda a região, uma das províncias minerais mais ricas do mundo), boa infra-estrutura, taxas de escolarização superiores à média africana, fizeram da Costa do Marfim um país que, naquele ano de 1992, completava 20 anos de melhoria ininterrupta no seu Índice de Desenvolvimento Humano. A continuar a tendência, em mais 2 décadas, seria um país de desenvolvimento médio e o 3º IDH da África. Esta foi a afirmação de um painel de economistas, chamados pelo Banco Mundial e pelo Banco Africano de Desenvolvimento. Eu ouvia com atenção ao seminário e pensava presenciar a fórmula para sair da pobreza.
As Organizações humanitárias também eram otimistas. Reduziram ou fecharam seus programas de assistência no país. Abdijan, por sua paz e infra-estrutura, era então a sede administrativa sub-regional de muitos organismos do sistema internacional. Mas, política não segue tendência estatística. E não há conquista que não possa ser perdida. Desde a década de 90 a Costa do Marfim alternou crises políticas com períodos de normalidade, cada vez mais raros. Conflitos institucionais evoluíram para guerrilhas, Golpes de Estado e guerras civis. Os investimentos se foram pouco a pouco. As agências humanitárias nunca retornaram. Restaram apenas os investidores de alto risco e baixa responsabilidade que trocam diamantes por armas ou até cocaína.
Hoje a Costa do Marfim vive talvez os últimos dias da atual guerra civil. Seja qual for o desfecho, outras guerras provavelmente seguirão. A infra-estrutura do país acabou. Da rede de escolas públicas, restam ruínas. Estima-se que as taxas de analfabetismo estão entre as cinco piores do continente africano. Quase 200.000 crianças (abaixo de 16 anos) estão arregimentadas nas forças bélicas. Um levantamento do UNICEF contou 18000 crianças com menos de 12 anos pelas ruas das 3 principais cidades do país. Dois terços das crianças marfinesas sofrem de desnutrição. Todo o ganho social das décadas de 70 e 80 se foi. Mesmo que a paz chegue ao país (e, em curto prazo, não há indícios que virá), seriam necessárias décadas e bilhões para voltar ao ponto de 1990. Até lá, toda uma geração de crianças marfinesas terá morrido ou sobrevivido em condições de fome, violência e abandono.
Costa do Marfim e tantos outros exemplos só corroboram o que se sabe e freqüentemente se tenta esquecer. Há desafios econômicos, sociais, educacionais, mas o Desenvolvimento é uma tarefa primeiramente Política (com o P mais maiúsculo que se pode ter) e sem política não pode avançar.

segunda-feira

Well, Well...

Músicas são como perfume, disse Maria Bethania em um documentário. Despertam memórias, abrem gavetas da mente. Desenfurnam reminiscências perdidas em algum quarto dos fundos da vida.
Noutro dia, “Oito Anos" (Dunga/Paula Toller) invadiu o dial e resgatou uma destas memórias fragmentadas: As viagens matutinas para a escola de meu filho, então também com seus pouco mais de 8 anos. Ouvíamos o CD da Paula Toller (sim, ela nao canta nada, mas nem precisa:->) e ele gostava de responder corretamente a todas as perguntas da canção. Há alguns que nascem engenheiros. Eu, como nasci com o dom da confusão, divertia-me irritando-o com respostas estapafúrdias. Bem, só usar a palavra estapafúrdia já é uma provocação para com os nascidos engenheiros.

Algumas das respostas tortas para as 25 perguntas do “Gabriel”, resgatadas pelo perfume da Paula Toller . Well, well..
      1.       Por que você é Flamengo e meu pai Botafogo?
a.       Porque nenhum dos dois tem bom gosto para escolher time.
2.       O que significa "impávido colosso"?
a.       Que o autor do hino tinha mais vocabulário do que inspiração.
3.       Por que os ossos doem enquanto a gente dorme?
a.       Porque eles têm pesadelos.
4.       Por que os dentes caem?
a.       Porque não sabem sair voando.
5.       Por onde os filhos saem?
a.       Pelo mesmo lugar dos pais, pela porta de casa.
6.       Por que os dedos murcham, quando estou no banho?
a.       Para se disfarçarem de esponja.
7.       Por que as ruas enchem, quando está chovendo?
a.       Porque sonham ser piscina.
8.       Onde estão meus primos?
a.       Passeando na imaginação de seus avós, que tiveram filhos únicos.
9.       Por que o fogo queima?
a.       Porque não passa sundown.
10.   Por que a lua é branca?
a.       Porque passa sundown demais.
11.   Por que a terra roda?
a.       Porque quer ficar tonta.
12.   Por que as cobras matam?
a.       Porque são rasteiras.
13.   Por que o vidro embaça?
a.       Porque é enrolado.
14.   Por que você se pinta?
a.       Para formar um quadro.
15.   Por que o tempo passa?
a.       Porque ele não sabe lavar.
16.   Por que a gente espirra?
a.       Para que as pessoas digam “Saúde”.
17.   Por que as unhas crescem?
a.       Porque são aparecidas.
18.   Por que o sangue corre?
a.       Porque tem pressa.
19.   Do que é feita a nuvem?
a.       De algodão.
20.   Do que é feita a neve?
a.       Do algodão que sobrou das nuvens
21.   Como é que se escreve Re...vèi...llon
a.       Melhor dizer passagem de ano.
22.   Quanto é mil trilhões vezes infinito?
a.       Vai deitar menino.
23.   Por que deitar agora?
a.       Porque seu pai não sabe quanto é Mil trilhões vezes infinito
24.   Por que a gente morre?
a.       Qual era a conta mesmo? Mil trilhões vezes infinito? Vai zero, sobre 1...
25.   Quem é Jesus Cristo?
a.       Alguém que sabe quanto é Mil trilhões vezes infinito.

domingo

PREVISÃO

Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
(...)
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

(Affonso Romano de Sant’ Anna)


- As imagens do satélite mostram uma massa de ar polar, vinda da Argentina, que mudou o tempo hoje no Sul do país. Amanhã é a vez de São Paulo. Já no meio da tarde, o frio alcança a maior cidade do país.

Miltinho, Cátia, Maria das Graças e Getúlio assistem, rendidos ao sofá. Cada qual em seu lugar de direito ou de destino. Todos orbitam a luz hipnotizante da TV. As roupas com sobriedade de um mapa da moça do tempo não escondem seu visual bem tratado. Em tom professoral, decifra as machas coloridas da tela.

- Deve ser legal viajar de Satélite. Quebra o silêncio Miltinho.
- A Lua é um satélite, você podia viajar pra lá. Sugere Cátia.
- Messi é da Argentina, mas o Maradona era melhor. Divaga Getúlio.
-  Shhhhh!!!! Reivindica Maria das Graças.

Todos obedecem. As cores dançam na tela. A TV retoma o monopólio dos ruídos. Cessada as distrações, os habitantes da sala voltam para seus colóquios interiores.

Frio?
Miltinho se anima. Tem feito um calor estraga-prazeres. Finalmente, poderá estrear o casaco novo. A menina da contabilidade deu mole. Ela não vai resistir ao casaco. Pensa nele no casaco. Gosta da imagem. Fica mais forte. Parece americano. Sua mãe lhe deu o casaco. Cátia implica com ele. Diz que é protegido. Ela é chata. O casaco é maneiro. Se a menina da contabilidade quiser, eles podem sair sábado. Precisa de dinheiro. Vai pedir para a mãe. Cátia diz que ele é protegido. Melhor ela não saber. Dirá para mãe que precisa de um livro para a escola. Fica feliz com a imagem dele no casaco novo. Americano. Pensa na bunda da menina da contabilidade. Precisa perguntar para o Ari o nome dela. Precisa de dinheiro para sábado.

Frio?
Cátia queria ser Kátia. Mas, o pai não gosta de K. Ela acha que o pai nem sabe para que serve um K. Ela sim, um K faz diferença. Toda diferença. Kátias com K são muito mais legais. Vai fazer frio. Ela vai usar meias por baixo do vestido. Não. Ela vai usar calça. Vestido engorda. Não importa o que a balança diga. Ela sabe que está gorda. Ela precisa de uma calça nova. Mais justa. Essa calça dela a deixa baixinha. Precisa de uma calça de inverno, que alongue as pernas. Tem que gastar menos de celular. Parar de ligar para aquele traste. Ele não merece uma mulher alongada. Ele não merece nem uma Cátia com C. Precisa fazer umas contas. Não é folgada como Miltinho. Não quer favor da mãe. Não se conforma com um homem de 20 anos ainda ser “Miltinho”. Ele sempre será “inho”. E ela Cátia, com C. Desanima e pensa no chocolate guardado no seu armário. Escondido do esfomeado do Miltinho. Frio dá vontade de comer chocolate. Não! Nada de chocolate. Ela tem que caber na calça 38 daquela vitrine do shopping. Com a calça 38, ela vai ficar gostosa, alongada como se fosse Kátia com “K”.

Frio?
Maria das Graças tenta se lembrar onde está seu casaco. Tem bolinhas, mas gosta dele. Há muito tempo ele foi azul. No tempo quando ela era Gracinha. Hoje, é Dona Maria. Quando muito, Maria das Graças. Não tem graça. Não tem trocadilho. Lembra do casaco, quando era azul. Da quermesse na Igreja da Vila Ré. Lembra de Paulinho. Lembra do calafrio do beijo clandestino, atrás da quadra. Lembra das mãos escavadoras de Paulinho a explorar todo o seu corpo. Queria saber por onde anda Paulinho e suas mãos decididas. Sente um calafrio. Lembra que era Gracinha. Lembra do azul. Olha para Getúlio e o calafrio passa. Getúlio e suas mãos frias. Amanhã vai fazer uma sopa.

Que tempo vai fazer amanhã?
Getulio atentou para a moça do tempo e não escutou uma palavra. O cabelo preso dela lembrou o de Clarice. O marido dela está viajando. Não o da mulher do tempo, o de Clarice. Foi visitar a mãe. Pobre, vai morrer. A mãe, não o marido de Clarice. Corno dura muito, sorri da própria esperteza. Sente remorso por brincar com a morte da mãe dele. Mãe é sagrada. Até mãe de corno. Ri novamente. Amanhã visitará Clarice. Vai levar um perfume. No Largo tem uma lojinha barata. Vai escolher um com cheiro de flor. Ele merece. Precisa passar aquela válvula da mulher de Higienópolis para o outro dia. Pensa que a mulher de Higienópolis tem cara de quem não presta. Conclui que nenhuma presta. Com exceção de Cátia. Nome de santa. Fica na dúvida é Santa Rita de Cátia ou “de Cássia”. Não importa. Tem certeza de que Cátia, Maria das Graças e a mãe dele prestam. Até a mãe do corno do marido da Clarice presta, pensa triunfante. Vai direto para Clarice, depois do trabalho do prédio da Vila Nova York. Nunca iria para Nova York, lá faz frio. Não gosta de frio. Pode dizer que o celular estava sem bateria. Tem que voltar logo. Clarice cozinha mal. Melhor jantar em casa. Tomara que tenha carne de panela. Getúlio não escutou a moça do tempo. Não levará o casaco. Mas, não passará frio.

Fim da previsão.

sexta-feira

TRÊS LIVROS SOBRE RECEBER E UM SOBRE DOAR



Semana sem filhos em casa dá para colocar em dia algumas coisas. Tipo, a leitura :-) E lá fui eu para a "pilha (virtual) da estante cinza", onde estaciono os livros da categoria “importante ler”. Por isto mesmo, sua leitura perde para a estante dos “certamente interessantes”. A pilha pendente era toda sobre um tema: Filantropia
Foram 4 títulos (ou 3 mais um, já que um deles destoa em estilo e mensagem dos demais) Todos sobre o tema da doação (de dinheiro, principalmente) para filantropia.
Nos 3 títulos assemelhados, a leitura é leve e instrutiva, há úteis dados compilados e boas histórias. De resto, carecem profundamente de novidades, têm um tom repetitivo e ingênuo, típico da mitologia estadunidense do herói anti-Estado, da crença do indivíduo que faz a diferença fora de seu grupo. Assim mesmo, foi uma leitura muito importante para se atualizar no debate (principalmente norte-americano, mas com impactos globais) sobre o tema. Os livros ajudam a perceber que as principais mudanças das organizações filantrópicas não são decorrentes das profundas transformações nos problemas que tentam resolver. E sim reação pura e simples (se algo é simples em reagir) às questões dos novos filantropos. Em palavras claras, uma resposta ao mercado financiador, mais uma evidência de que este é o real cliente das organizações.  Houve um tempo em que se defendia a idéia “do duplo cliente” (beneficiários diretos e doadores financeiros). Estes livros revelam que este tempo passou para as grandes filantrópicas. O cliente é quem paga a conta, repetem insistente e de diversas maneiras os 3 livros.
Dos três, a obra mais bem estruturada (até porque se destina ao público “profissional”) é  “Leap of Reason: Managing to Outcomes in an Era of Scarcity” de Mario Morino.  Dados e gráficos para tentar provar que a filantropia vai em sentido contrário dos outros mercados, atrairá pela razão e não mais pela emoção.
 “Give Smart: Philanthropy That Gets Results (Melissa Berman)” é dirigido a doadores e traz fórmulas de envolvimento “modernas”. Na verdade, repetições de manuais de gestão da década de 80.

Mais inspirador para os que gostam de ver bons exemplos é “DO MORE THAN GIVE: The Six Practices of Donors Who Change the World (Leslie R. Crutchfield, John Kania e Mark R. Kramer). Dos 3, a leitura mais leve e fluida, quase uma grande revista. No fim da leitura, a conclusão a que se chega é que esta coisa de doar anonimamente, de apoiar às idéias dos outros é passado. O bom mesmo é “ser o  cara”:-)
A 4a. obra foi de longe a que mais me agradou. “The Hole in our gospel” (Richard Stearns). Belamente prefaciado em Espanhol por Harold Segura, Richard tem elegância, boas histórias, mas não ameniza na mensagem: doação é um compromisso moral, desinteressado de tudo, exceto do se doar a si mesmo. Richard diz que há muitas igrejas (e muitos outros grupos humanos) que estão buscando o conforto, agradar aos outros. Isto representa o vazio do livro. Se eu fosse criar um slogan com o livro de Stearns seria: “Cliente o escambau! Mova-se pelo seu compromisso moral.” A rima é pobre, eu sei. Mas, a mensagem compensa rsrsrs
Inútil negar o conflito entre a moralidade do livro de Stearns e a lógica presente nos outros 3 livros. Perigoso tentar combina-las, no final, há o risco de se usar o parâmetro dos 3 primeiros e o disfarçá-lo com o discurso do último livro.
Como Stearns com certeza já leu os outros 3, eu recomendaria para os autores desses 3 livros a leitura de Stearns:-)

POEIRA E MUDANÇA

Eu sou otimista, a realidade é que não é, dizia meu pai. Eu sou otimista com o avanço inevitável da liberdade e Democracia da tal “revolução democrática” do Oriente Médio, de 2011.
A mídia tentou ajudar meu otimismo. Levantes foram retratados com enredos cinematográficos. Criaram-se propósitos, lógicas. Principalmente, mocinhos e bandidos. Onde existe uma realidade política-social complexa, vendeu-se a idéia de jovens internéticos lutando contra tanques. Parafraseando Vandré, “da força do twitter, vencendo canhões”. Há quem compre isto. Eu gostaria de comprar. Mas, a realidade conspira contra meu otimismo.
Na Tunísia, o mesmo grupo apoiador da ditadura segue no poder e manobra para que nas eleições só seus apoiadores sejam candidatos viáveis. Conseguirá.
No Egito, o exército, que esteve no poder junto com Mubarak (e com Sadat, seu antecessor), segue intocavelmente forte e já garantiu junto aos potenciais candidatos de “oposição” (praticamente, todos ex-colaboradores íntimos do regime destituído) não só a garantia de seu espaço, mas até a ampliação. Exemplo, os tribunais independentes para militares, que Mubarak havia aceitado para aplacar a oposição das ruas, já foram revogados.
Na Líbia, potências ocidentais (as mesmas que fizeram as guerras do Iraque e Afeganistão) armam radicais e bandos civis para garantir o fluxo de petróleo. Bombardeiam alvos civis. Elegeram para o papel de vilão do momento, o mesmo ditador com o qual conviveram e eram sócios até 3 meses atrás (já vi este filme com outro ator, Sadam). O massacre da população civil líbia, a guerra civil e o crescimento de grupos radicais islâmicos são os únicos resultados concretos até agora. Diante da realidade tribal líbia, da profunda divisão do país e da inexistência de sociedade civil (ou partidos) esses serão os únicos resultados a se esperar, no futuro próximo.
Síria e Bahrein estão reprimindo com eficiência a oposição e o medo de mudanças radicais fará retroceder em uma ou mais décadas a lenta abertura que se operava nestes países.
Além das mortes, os movimentos no Norte africano provocam outra mudança concreta. As políticas imigratórias européias. França e Espanha recusam os barcos e trens de refugiados dos conflitos. Ameaçam rever os acordos de livre circulação dentro da UE. Seus representantes, com gravatas italianas, farão longos debates em Francês, citarão filósofos alemães. Ao final, usarão o conflito africano como desculpa para retroceder, ainda mais, suas políticas migratórias.
O que é vendido como avanço democrático, fora a troca de meia dúzia de corruptos, redundou em sangue e retrocesso. Sigo otimista, a realidade não.

quinta-feira

GRANDES EMPRESAS, GRANDES ENGANOS


Torço pelo Fluminense, sou capixaba, em resumo, um cara de paz.  Mas, hoje, ao escutar pela milionésisima vez certo discurso, reagi. O papo era aquele que enaltece a superioridade empresa (uso este termo no sentido lato, de “organização econômica, civil ou comercial, constituída para oferecer ao mercado bens e/ou serviços”) privada em relação aos governos, ONG’s e outras formas de organização empresarial, tais como empresas coletivas, etc.
Este discurso dá por certo, provado e irrefutável atributos da empresa privada. Todos bons. Qualidades como eficiência, maximização de resultados, transparência, bom uso de recursos, racionalidade todos seriam atribuídos, quase exclusividade, senão invenções da empresa privada. Todo o restante, ruim, caberia aos outros. Coisa de marketing, algo em que a empresa privada é irrefutavelmente melhor do que as demais formas de organização empresarial.
Pacientemente expliquei ao meu arrogante interlocutor que os dados não sustentam seu discurso. As empresas privadas são excelentes para gerar riquezas, mas não foram capazes de organizar com eficiência boa parte das grandes necessidades humanas. Segurança, Saúde, Habitação, Educação de Massas. Nas áreas que contribuem, só o fazem com algum grau de benefício público (estímulos/subsídios/concessões) por outras formas de associação (geralmente o Estado). Ou ainda, quando são reguladas e vigiadas.
Não há uma grande Universidade privada no mundo (as que não são públicas são religiosas ou de mantenedoras coletivas). Procure alguma instituição privada, entre a lista dos 50 maiores centros de pesquisa?  Não há. Os grandes feitos da Humanidade foram e continuam sendo alcançados por indivíduos organizados coletivamente em benefício coletivo. As grandes descobertas tinham interesses econômicos, mas foram estruturadas por Estados (não é à toa que a História mostra que os Estados Nacionais Modernos que primeiro se organizaram, Espanha e Portugal, saíram na frente nas descobertas). Foi uma agência estatal quem levou o Homem à Lua. Uma empresa privada não busca eficiência, busca lucro. Algo muito distinto. 
Tive que lembrar ao meu mal informado colega de:  Filas, protocolos perdidos, encomendas trocadas, cobranças indevidas, produtos com defeitos, propaganda enganosa, custos parciais transferidos a preço final. Nada disto existe na empresa privada? Algumas das corporações globais, cujos muito bem pagos CEOs posam nas capas das revistas como gurus da eficiência, não conseguem atender um simples queixa de seus consumidores.
Não queria, mas fui forçado a apelar para referências acadêmicas. No quesito transparência e bom uso de recursos, vale dizer (e provar) que os prejuízos decorrentes de desvios e fraudes nas empresas privadas excedem até mesmo a perda provocada pela corrupção no Estado. Quem diz isto é a Universidade de Cornell, verdadeira incubadora de CEOs, em um estudo sobre fraudes (Samuel Curtis Johnson “Graduate School of Management Journal" Dezembro de 2010). Você não votou no presidente da Merryl Linch ou da Mesbla, mas teve que pagar pelos seus prejuízos da mesma maneira.

Conhece algum  funcionário de empresa privada que daria aula para uma classe multiseriada lotada, por R$500,00/mês e ainda tiraria dinheiro do bolso para comprar materiais para seus alunos?  Pois isto ocorre em milhares de casos por todo o mundo em outros tipos de empresa (públicas, não-governamentais, etc). A capacidade de maximizar recursos é comprovadamente muito maior nos empreendimentos não-privados. Um Nobel de Economia (Stiglitz) já provou que a competição, embora maximize resultados em um primeiro ciclo, prejudica a eficiência e gera cartelizaçao em mercados abertos não-regulados.

Qualquer aluno de ensino médio estudou que, na evolução social, o mundo iniciou-se na empresa familiar, foi para a privada e só muito tempo depois chegou às formas de Estado e outras organizações coletivas e/ou associativas. Noutras palavras, o coletivo é a evolução do privado, não o contrário.
Mas, não quero cair no erro primário de alguns “oriundi” do mundo corporativo. Não defendo a superioridade de ONGs, do Governo, de ninguém. Os sacos são distintos, mas é tudo farinha. Há muitos erros e acertos. Não há monopólio das virtudes, nem exclusividade de vícios. Humanos compartilhamos nossas ineficiências e contradições. As diversas formas de empresa  aplicam-se a objetos distintos. Problemas coletivos não serão resolvidos pela lógica da empresa privada.

Meu interlocutor saiu tonto com os dados. Deve ter pensado que só um cara de ONG para falar este tipo de absurdo.  Sem problemas, sou um cara de paz e paciente. Esperei 26 anos por um novo título do brasileirão,  posso aguardar um pouco para meu colega perceber que a Microsoft tem muito a aprender com o Exército de Salvação  :)

quarta-feira

BORBOLETO



Como aquele outro, este jogo é infinito...

Rei tênue, torto bispo, encarniçada
rainha, torre direta e peão ladino
por sobre o negro e o branco do caminho
buscam e libram a batalha armada.
Desconhecem que a mão assinalada
do jogador governa seu destino,
....
Também o jogador é prisioneiro
 (diz-nos Omar) de um outro tabuleiro
de negras noites e de brancos dias.
Deus move o jogador, e este a peleja.
Que deus por trás de Deus a trama enseja
de poeira e tempo e sonho e agonias?
( J.L. Borges)
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No clássico “A Origem das Espécies”, Darwin afirma que “as refinadas danças entre casais e as brigas entre pretendentes são parte importante do processo de escolha dos parceiros sexuais”.

Meus filhos precisam ser gratos ao fato de que na nossa espécie a capacidade reprodutiva não dependa de nossas habilidades como dançarinos ou lutadores. Caso contrário, eles não existiriam. O processo de atração de parceiros entre nós é complexo e sofisticado. Os biólogos não sabem, mas isto se deve exclusivamente às fêmeas da espécie. Elas são a parte complexa e sofisticada. Se dependesse apenas de nós machos, tudo seria mais simples. E provavelmente já estaríamos fazendo companhia a Dinossauros e Mamutes na galeria de espécies extintas.

No Homo Sapiens (se os biólogos tirassem o olho do microscópio e olhassem para o mundo, a classificação seria Mulher Sapiens, Homo Tolinhos), são as trocas de olhares, as cantadas (não literais), as chegadas, as ficadas e o namoro que antecedem o acasalamento. Na opinião dos biólogos e de uma tia minha, incluída a cena toda, os e-mails, as flores, as poesias, as declarações de amor, o objetivo é o mesmo das demais espécies: chegar ao pódio, cama, etc. Na linguagem dos biólogos “conseguir um parceiro capaz de aumentar as chances de sobrevivência dos descendentes”. Na linguagem da minha tia, “Aquilo”. Alguns Homo(bem)Sapiens conseguem muito sucesso neste processo.

Foi Darwin quem, após anos de estudo, notou que o processo de seleção dos parceiros sexuais é uma força poderosa na evolução das espécies. Se ele saísse mais da estufa teria chegado a esta descoberta bem antes. Ele chamou esse processo de seleção sexual. Se as fêmeas de uma espécie de pássaros escolhem os machos mais coloridos, ao longo de gerações, todos os pássaros serão muito coloridos. Se escolherem o macho pelo critério da força demonstrada em uma luta, haverá indivíduos cada vez mais fortes. Com exceção do Homo(que nunca foi)Sapiens, nas demais espécies quanto maior o chifre do macho, mais bem sucedido ele é. E mais herdeiros chifrudos ele gerará. Darwin concluiu que isto explicaria porque machos disputam, medem forças para saber quem é maior (coisa bem de macho mesmo).

Resumo: o futuro da espécie reside na capacidade de julgamento das fêmeas. O padrão natureza é que as fêmeas detêm a escolha. Se Darwin saísse na balada, não precisaria ter ficado anos em um navio e estudado tartarugas gigantes em ilhas remotas para descobrir isto.

Aos machos cabe o papel de cortejadores. Dançam, exibem sua plumagem e seus chifres (algo que não parece muito “coisa de macho”, mas tudo bem). As fêmeas detêm o poder de cortejadas. Juízas soberanas. Observam, dão notas e escolhem. Para os biólogos, isto explica porque os machos desenvolvem a parafernália vistosa ou bélica. Por sua vez, as fêmeas seriam discretas e não exibiriam seu verdadeiro poder. Machos seriam exibidos e fêmeas esconderiam o jogo. Outra constatação Darwin teria feito muito rapidamente, se fosse mais chegado na perpetuação da própria espécie.

Porém, há exceções ao padrão cortejador-cortejada, nos quais os papéis estão invertidos. Não me refiro às diversas opções. A Biologia tem estudado com detido interesse às espécies nas quais as fêmeas se exibem e os machos escolhem.

Além deste diminuto grupo excepcional, Fernando Reinach (Biólogo) escreveu recentemente sobre uma grande descoberta científica: Uma pesquisa que descobriu uma espécie onde os dois papéis existem, alternadamente. As borboletas africanas, Bicyclus Anynana. Como ela cresce e se reproduz em poucas semanas, e não perde tempo no Facebook, Blogs e coisas assim, aprende e se adapta muito rapidamente. Nas borboletas que nasciam na época da chuva, são os machos (a despeito das calúnias, há sim borboletas machos) que assumem o papel de cortejadores. Eles dançam em volta das cortejadas, para estimular a cortejada a mostrar sua beleza. Mas, esse comportamento se inverte na época das secas, quando as fêmeas assumem o papel ativo e os machos se deixam cortejar. Borboletas modernosas estas.

É o primeiro caso documentado da alternância de papéis entre cortejado e cortejadores em uma espécie animal. No Homo(nada)Sapiens, ainda há divergências debatidas nas universidades e botecos ao redor do mundo. Os biólogos dizem que talvez nossa espécie possa se encaixar neste grupo também. Certamente eles, como seu guru Darwin, andam passando muito tempo na estufa. Eu não preciso de Biologia para saber em que grupo estou. Mas, talvez isto se deva à minha experiência. Afinal de contas, meus dados pessoais influenciam na minha ciência.

Os cientistas declaram que não têm certeza de qual seria a vantagem dessa alternância de papéis entre os sexos. Mais uma evidência de que saem pouco do laboratório. Se você é uma pessoa que gosta de ir à luta, mas noutras gostaria de ser cortejado e exercer o passivo poder da escolha, talvez exista um pouco de Bicyclus Anynana em você.

Quanto a mim, se existir reencarnação, já decidi o que quero ser: Borboleto.

quinta-feira

"VÍCIO"

E fugiste... Que importa ? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste
Onde a minha saudade a Cor se trava?...
                                                               (Mário Sá Carneiro)


Eu uso, confesso. Sei que contradiz mais do que explica. Desnecessária desculpa. Retém mais que revela. Fazer o que? Talvez seja um prazer oculto de quem segreda o que a palavra não diz. Arte matreira. Proíbe ao dicionário interpretá-lo. Anuncia fortemente que não é o que parece ser. Quase uma provocação. Um sigilo. Redundância para falar muito e não dizer o que deve.

Eu uso, confesso. Passo muito tempo sem. Evito. Desvio. Deixo de lado mesmo. Parece. O preço é alto. É uma brincadeira de faz-de-conta. E perdi a conta. Sei, preciso de abstinência. A distância ajudaria. Mas, ela sempre está por perto. Com suas linhas sutis, quase um sorriso, um trejeito. Por cima, com o seu ar triunfante. Não tenho chance. Recaída na certa. Sem aviso.
Eu uso, confesso. Não para advertir que não me pertence. Que é empréstimo o que de direito não é. Eu uso além. Abuso. Confesso. Deveria existir uma lei contra isto. Multas exorbitantes. Um decreto real. Um mandamento divino com danações eternas para os insistentes. Um imposto para a impostura dela. Delas. Plural e Par. Quase uma conspiração dos sentidos vagos.

Eu uso. Confesso. Ela vem e ponto. Ou melhor, ela vem sem ponto. Pode ser a insegurança de não ser entendido. Covardia de não enfatizar. Talvez seja uma proteção. Tática defensiva. Conforto da sua escolta. Cubro-me com seu véu.  Muletas da indefinição.

Eu uso, confesso.

Meu nome é Eduardo e eu uso ASPAS.

Ponto “Final”

MISTÉRIOS

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
(Fernando Pessoa)
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Viver é acumular mistérios. Habituamo-nos à escassez de repostas. Aprendi a conviver com mistérios. Por que mulheres, capazes de enfrentar um exército sozinhas, vão ao banheiro em dupla? Por que na França não existe pão francês? Se arroz e feijão são carboidratos tão similares, como se complementam tão perfeitamente? Porque o amor gosta de nascer onde não é plantado? E morre, quando dele muito cuidamos?

Se o último trem para Jaçanã nunca saiu às 11 horas, porque o cara não podia ficar nem mais um minuto com ela? Seria casado? Tinha outra? Estaria ele interessado somente “diversão”? Teria ele se arrependido?

Os anos não resolvem os mistérios. Alguns são abandonados. Desistidos. Outros se tornam íntimos. Companheiros de caminhada. Pouco desvendo. E, ainda para as escassas respostas encontradas, surgem renovados mistérios. Recém entendi porque qualquer número elevado a Zero vira 1. Menos um mistério na vida. Porém, meu contentamento com o débito na contabilidade de mistérios durou pouco. Um novo apareceu: O chat do Skype ou do MSN.

A canetinha invisível, guiada por uma mão fantasmagórica do chat é uma escritora de mistérios. A canetinha escreve, escreve. Caligrafia cuidadosa. Fico a imaginar. Talvez revelações sobre segredos preciosos? Broncas e protestos desaforados? Seria como o texto da mão invisível da parede bíblica, uma condenação divina? Declarações de amor? Confidências sobre amores clandestinos? Confissões? Decassílabos românticos? A fórmula da felicidade? Talvez, letra por letra, componha a resposta final sobre o maior mistério da humanidade: “para onde vão as canetas bics que todos perdemos durante toda a vida”. Mais a canetinha fantasma desenha mais antecipações gera.

Há vezes que a canetinha escreve compulsivamente. Documenta longas reflexões. Mas, depois de alguns segundos, aparece um decepcionante “sim” ou um órfão ícone de um sorriso. Sorriso de quem oculta.

Noutras vezes, após escrever muito, tudo pára. Nada aparece no chat. Uma borracha não existente apaga o que nunca foi visto. Nunca será lido.  Palavras mortas. Engolidas. Atravessadas na garganta virtual. O que escreveria? Que palavras vinham? Por que o arrependimento? Faltou coragem? A canetinha tem seu mistério nutrido no arrependimento de quem a movimenta. Textos natimortos, antes do “ENTER”. Mistérios que seguirão. Como aqueles tradutores que, após um discurso longo,  resumem-se a dizer: “Ele concorda”  ou "ele pensa de outra maneira". Déspotas usuários que não permitem a liberdade de expressão da canetinha.

Melhor confortar-se com os mistérios. Afinal, guardam possibilidades que a realidade já abandonou. Por falar nisto, já percebeu que o Sérgio Chapelin tem a mesmo penteado, a mesma cara e o mesmo “boa noite” há 40 anos? Será que ele existe mesmo ou é um holograma? Mistério.



Este texto, se houvesse algum senso de ridículo, teria sido apagado, antes do ENTER :-)