quinta-feira

LIFE IS NOT "BIUTIFUL"

O que há de bonito em Biutiful? Minha esposa, minhas amigas (e mesmo alguns amigos) não hesitariam em responder à pergunta dizendo: Javier Barden.

Não é inveja do Barden (talvez seja, mas não é o tema aqui), mas a beleza do filme de Alejandro González Iñárrit é esquiva. Esconde-se em uma Barcelona quase inédita nas telas. Feia. Suja. Povoada por imigrantes ilegais, pobreza, drogas, abuso, corrupção e desespero. Há umidade na imagem. E odor de aquecedor barato. A Sagrada Família, as lojas de grife e o mar são apenas paisagens distantes, inacessíveis.

Histórias tristes de finais infelizes. Em Biutiful a morte é a protagonista. Espreita. Sobreviver é em vão. Não há saída. A justiça é uma impossibilidade. Ninguém é inocente. Ninguém é jovem demais para morrer.

Biutiful é um filme quase religioso. A única realidade bela é porvir. A única libertação é a morte. Seja nas plácidas cenas de neve, onde pai desconhecido e filho se encontram. No belo alvorecer dos corpos tranqüilos, descansados na praia.

O bonito em Biutiful é a rebeldia do amor, quando só há morte. O policial corrupto diz a Uxbal (personagem de Barden): “Não se pode confiar em quem tem fome”. Mas, quem tem fome, pode amar. O sujo ama. Os cadáveres adiados amam. Amar nas nossas misérias. Amar além da fome, além da morte, além do esquecimento.

Só há luz no fim do túnel. No meio dele, só a escuridão e o amor por lanterna.

quarta-feira

MUROS

-“Seu pai nunca gostou de muros”. Foi a única coisa que me ocorreu dizer.

Contamos tragédias pela aritmética.1000 mortos significam uma tragédia maior do que 700. Mas, a perda não se conta. Julia, 16 anos, não perdeu 700 pessoas. Perdeu uma, seu pai. Imensurável evento ímpar.

Em dia de missa de 7º dia, tudo já é tarde demais. No fim de uma rua de paralelepípedos eternamente molhados do bairro da Mosela está a casa que foi de Juca. Ainda é. Sua ausência estará nas fotos, escudos do Vasco, tabuleiro de xadrez com peças de um jogo que não poderá terminar. Livros deslocados povoam estantes, uma churrasqueira e uma gaiola vazia.

Juila a quem o sentimento de orfandade nos une. O destino de permanecer, e  ver os pai ir. Sempre é cedo demais. Sei que não há consolo. Não há possibilidade de esquecimento. A única saída é a memória e a dor que a acompanha. Nada menos necessário que a palavra, quando o vazio ocupa tudo.

-“Seu pai nunca gostou de muros”. Juca socorreu a irmã. E ainda foi retirar um vizinho dela. No meio do caminho, foi pego por um muro. Como tantos muros que pulara. Muitas barreiras vencidas. Mas, há muros insuperáveis.

Juca nasceu irmão do meio. Destino de equilibrar tudo. Pai sumido. Uma história comum de final incomum. Morava em uma casa-garagem. Corredores criados por divisórias em arquitetura estimulante para a imaginação infantil. Juca ajudava a mãe a recolher roupa-suja da classe média do bairro do Valparaíso. Vez por outra chegava atrasado no São Vicente de Paula. Juca pulava o muro para entrar na escola, em um tempo em que todos sonhavam pular para sair. Exceção na família honrou sua bolsa com coleção de notas 10.
Nas férias, pulava o muro do Petropolitano. Primeiro o do campo de futebol. Depois, o da piscina. Mais de 25 anos depois, já respeitado promotor público me mostrou orgulhoso sua carteira de sócio. Agora entrava pela porta da frente. Mas, confidenciou: - Duda, o clube era mais divertido, quando a gente pulava o muro.

-“Seu pai nunca gostou de muros”. Julia  explicou, como quem tenta entender: - “Ele estava aqui em casa e ligou para minha tia. Ela disse que iria esperar meu tio voltar com o carro. Meu pai disse: - Eu chego logo. E foi.”

Juca chegava. No quintal da casa do Seu Baron, Ricardo, uns 3 anos mais velho do que nós, tênis contrabandeado, pólo e sorrisos impecavelmente brancos, tinha limpado nossas figurinhas. Depauperados e derrotados, chamamos o Juca. Ele chegou. Desafiou o Ricardo.
-Meu Zico contra o seu monte. Quem ganhar mais leva tudo.
Ninguém tinha um Zico em 78. Ricardo não resistiu. Perdeu. Juca pegou o Zico dele de volta. E nos devolveu nossas figurinhas.

Ela riu da história. – Mesmo vascaíno, ele já teve orgulho do Zico. Ele não tinha jeito.
Ele deu jeito na vida. Foi empacotador de supermercado, digitador até concluir Direito da UCP. Por opção quis ser advogado de porta de cadeia. Comissão Justiça e Paz por quase 10 anos. Talvez para ajudar outros a transpor muros. Até chegar ao Ministério Público, onde se concentrou na área de defesa do consumidor. Quase um destino para um sujeito sem fáceis e cômodos sentimentos de justiça e indignação, mas de corajosas atitudes.

- “Seu pai nunca gostou de muros”. Julia, olha pela janela e diz: - “Ele gostava desta casa. Antes, dava para ver um pedaço da torre da Catedral daqui. Mas, o vizinho construiu este muro horrível e tapou a visão. Entramos com uma ação para derrubar”

Deve existir um gene anti-muros.

domingo

ARAÇAÚNA


"Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar. "
                                                     Mário Quintana
Cor vinho. Azedo e Doce na medida certa. O picolé de araçaúna da Ajelson e os primos dos mais variados graus são os reencontros certos nas praias do verão.

Por décadas vinham em saquinhos transparentes. Depois, a complicação que confundimos com evolução, criou embalagens opacas. Toda informação que tenho da araçaúna é o desenho do saquinho do picolé. Mas, poderia ser qualquer outro desenho que não reconheceria. Nunca vi uma araçaúna “em pessoa”. Não sei como é seu pé. Ou será árvore?  Nunca comi uma araçaúna. Terá sementes? Espinhos? Sua casca é da cor da polpa?

Da araçaúna não entendo nada. Não sei se floresce no outono ou se cai do pé quando madura.

Pode ser que o picolé que me acompanha há mais de 30 verões nem seja de araçaúna de verdade. Pode ser que não exista araçaúna. Pode ser que araçaúna seja uma invenção do desejo de um menino de chupar um picolé que fosse simultaneamente azedo e doce.

Poderia pesquisar. Google. Wikipédia. Fazer uma visita de campo. Conhecer os mistérios da araçaúna. Desfazer os mistérios da araçaúna. Entender o caminho da fruta ao saquinho.

Melhor não saber. Da araçaúna sacia-me o picolé da Ajelson.