quinta-feira

"VÍCIO"

E fugiste... Que importa ? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste
Onde a minha saudade a Cor se trava?...
                                                               (Mário Sá Carneiro)


Eu uso, confesso. Sei que contradiz mais do que explica. Desnecessária desculpa. Retém mais que revela. Fazer o que? Talvez seja um prazer oculto de quem segreda o que a palavra não diz. Arte matreira. Proíbe ao dicionário interpretá-lo. Anuncia fortemente que não é o que parece ser. Quase uma provocação. Um sigilo. Redundância para falar muito e não dizer o que deve.

Eu uso, confesso. Passo muito tempo sem. Evito. Desvio. Deixo de lado mesmo. Parece. O preço é alto. É uma brincadeira de faz-de-conta. E perdi a conta. Sei, preciso de abstinência. A distância ajudaria. Mas, ela sempre está por perto. Com suas linhas sutis, quase um sorriso, um trejeito. Por cima, com o seu ar triunfante. Não tenho chance. Recaída na certa. Sem aviso.
Eu uso, confesso. Não para advertir que não me pertence. Que é empréstimo o que de direito não é. Eu uso além. Abuso. Confesso. Deveria existir uma lei contra isto. Multas exorbitantes. Um decreto real. Um mandamento divino com danações eternas para os insistentes. Um imposto para a impostura dela. Delas. Plural e Par. Quase uma conspiração dos sentidos vagos.

Eu uso. Confesso. Ela vem e ponto. Ou melhor, ela vem sem ponto. Pode ser a insegurança de não ser entendido. Covardia de não enfatizar. Talvez seja uma proteção. Tática defensiva. Conforto da sua escolta. Cubro-me com seu véu.  Muletas da indefinição.

Eu uso, confesso.

Meu nome é Eduardo e eu uso ASPAS.

Ponto “Final”

MISTÉRIOS

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
(Fernando Pessoa)
---

Viver é acumular mistérios. Habituamo-nos à escassez de repostas. Aprendi a conviver com mistérios. Por que mulheres, capazes de enfrentar um exército sozinhas, vão ao banheiro em dupla? Por que na França não existe pão francês? Se arroz e feijão são carboidratos tão similares, como se complementam tão perfeitamente? Porque o amor gosta de nascer onde não é plantado? E morre, quando dele muito cuidamos?

Se o último trem para Jaçanã nunca saiu às 11 horas, porque o cara não podia ficar nem mais um minuto com ela? Seria casado? Tinha outra? Estaria ele interessado somente “diversão”? Teria ele se arrependido?

Os anos não resolvem os mistérios. Alguns são abandonados. Desistidos. Outros se tornam íntimos. Companheiros de caminhada. Pouco desvendo. E, ainda para as escassas respostas encontradas, surgem renovados mistérios. Recém entendi porque qualquer número elevado a Zero vira 1. Menos um mistério na vida. Porém, meu contentamento com o débito na contabilidade de mistérios durou pouco. Um novo apareceu: O chat do Skype ou do MSN.

A canetinha invisível, guiada por uma mão fantasmagórica do chat é uma escritora de mistérios. A canetinha escreve, escreve. Caligrafia cuidadosa. Fico a imaginar. Talvez revelações sobre segredos preciosos? Broncas e protestos desaforados? Seria como o texto da mão invisível da parede bíblica, uma condenação divina? Declarações de amor? Confidências sobre amores clandestinos? Confissões? Decassílabos românticos? A fórmula da felicidade? Talvez, letra por letra, componha a resposta final sobre o maior mistério da humanidade: “para onde vão as canetas bics que todos perdemos durante toda a vida”. Mais a canetinha fantasma desenha mais antecipações gera.

Há vezes que a canetinha escreve compulsivamente. Documenta longas reflexões. Mas, depois de alguns segundos, aparece um decepcionante “sim” ou um órfão ícone de um sorriso. Sorriso de quem oculta.

Noutras vezes, após escrever muito, tudo pára. Nada aparece no chat. Uma borracha não existente apaga o que nunca foi visto. Nunca será lido.  Palavras mortas. Engolidas. Atravessadas na garganta virtual. O que escreveria? Que palavras vinham? Por que o arrependimento? Faltou coragem? A canetinha tem seu mistério nutrido no arrependimento de quem a movimenta. Textos natimortos, antes do “ENTER”. Mistérios que seguirão. Como aqueles tradutores que, após um discurso longo,  resumem-se a dizer: “Ele concorda”  ou "ele pensa de outra maneira". Déspotas usuários que não permitem a liberdade de expressão da canetinha.

Melhor confortar-se com os mistérios. Afinal, guardam possibilidades que a realidade já abandonou. Por falar nisto, já percebeu que o Sérgio Chapelin tem a mesmo penteado, a mesma cara e o mesmo “boa noite” há 40 anos? Será que ele existe mesmo ou é um holograma? Mistério.



Este texto, se houvesse algum senso de ridículo, teria sido apagado, antes do ENTER :-)