sexta-feira

A DISTÂNCIA DE PORTO-PRÍNCIPE A BRASÍLIA

Há mais de 3 milhões de haitianos espalhados pelo mundo, abrigados principalmente nos EUA, Canadá, França e República Dominicana. Trabalham e se integram em comunidades que garantem remessas, a principal fonte de renda de 9 milhões de habitantes de um país devastado há 50 anos por tragédias naturais e políticas.
Mas, a tentativa de uma pequena parcela desta diáspora (aproximadamente 3.500, ao longo dos últimos dois anos) de entrar no Brasil foi suficiente para gerar histórias mirabolantes e uma reação política injusta e injustificável que contraria o melhor interesse nacional.
Presente de Brasileiro
A Resolução nº 97/2012 (vigente a partir de 18/1/2012) foi o presente dado pelo governo brasileiro ao povo haitiano, no segundo aniversário do cataclísmico terremoto que matou mais de 300.000 pessoas e devastou ainda mais a economia do país mais pobre do hemisfério. Melhor renomear presente de grego como presente brasileiro. Pela resolução, o Brasil passou a exigir visto prévio para visitantes (turistas) e articulou com governos de países vizinhos para fazerem o mesmo. Criou assim, um “círculo de segurança” para manter os haitianos distantes. Limitada comparação, o único precedente semelhante foi registrado no princípio da 2ª Guerra, quando uma política imigratória dificultou a uma nacionalidade específica em vistas de uma tragédia solicitar abrigo no Brasil.
A resolução apenas coroou uma política que já vinha sendo aplicada pelo governo brasileiro para dificultar o acesso de haitianos ao Brasil. Enquanto, os EUA, em crise econômica, e com uma política imigratória das mais restritivas, concederam quase 50.000 vistos a haitianos, desde o terremoto, o Brasil não passou dos 1600 vistos (menos do que a pequena e pobre Trinidad y Tobago).
Depois da Resolução, para se candidatar ao visto brasileiro, o haitiano interessado deve ter passaporte em dia, ser residente no Haiti (o que deve ser comprovado por atestado) e apresentar declaração de bons antecedentes. Com todos os documentos, ainda há uma taxa não reembolsável de US$ 200 para a emissão do visto. O custo é altíssimo porque no Haiti, 80% da população ganha menos de USD700 por ano! Aliado ao preço extorsivo, poucos haitianos dispõem de todos os documentos - cuja produção leva cerca de um mês. As exigências e o custo se constituem em uma barreira adicional.

Duas Justificativas e Duas Razões
O Governo Brasileiro, em defesa das medidas, alega que agiu movido por interesses humanitários e que, em troca, “bondosamente” abriria 1200 vagas anuais para haitianos. A política brasileira foi apresentada como: formar de coibir a atuação dos “coiotes” (criminosos especializados em atravessar pessoas por fronteiras, comumente envolvidos com agiotagem e tráfico humano); e de garantir condições para integração adequada dos imigrantes. A seguir, contesto a razoabilidade de tais razões e apresento outras, estas sim consistentes, para a ação do governo.
A justificativa de endurecer a entrada para coibir os traficantes é risível porque quanto mais duras são as restrições à imigração legal, quanto mais caro entrar em um país maior o incentivo aos meios ilegais. A restrição aumenta as possibilidades da atuação nefasta dos traficantes, em um país com 15 mil Km de fronteiras mal vigiadas, como o Brasil. A resposta aos “coiotes” é a Polícia Federal. A prevenção contra eles passa pela facilitação dos canais oficias.  Há outros povos vítimas dos “coiotes” no Brasil, como bolivianos e chineses, mas eles não foram atingidos por medidas iguais às aplicadas aos haitianos. O argumento governamental de que restringe para coibir os “coiotes” é extremamente inconsistente.
A segunda justificativa é que o país não poderia dar abrigo adequado a um numero maior de imigrantes haitianos.  Analisemos a matemática desta desculpa, quero dizer, desta justificativa.  A inserção de cada imigrante (alojamento, curso de português e outros, colocação profissional, SUS, etc.) custa, pelos dois anos do período de integração, em torno de R$20.000. Depois, cada imigrante, gera renda, paga impostos como qualquer outro residente e, portanto além de cobrir seus custos, ainda contribui para o país. Portanto, receber 10 vezes mais haitianos do que a infame cota determinada custaria para o país menos de 10% do custo anual do valor gasto pelo governo brasileiro com a presença militar na impopular MINUSTAH (Missão da ONU no Haiti). Embora fácil argumentar contra a presença miulitar brasileira no Haiti, este não é meu objetivo aqui. Contudo é bom ressaltar que esta presença brasileira no Haiti já é a mais longa da história (completa 8 anos em 2012). E também a mais cara, já custou mais de R$ 700 milhões. Os resultados são, na avaliação mais condescendente, paliativos. Além de investir 100 vezes mais em ajuda militar do que social, a política brasileira no Haiti adia a necessidade de que o país tenha suas próprias e suficientes forças de segurança. Receber os haitianos teria grande impacto positivo para a Ilha Caribenha poderia facilmente ser pago com uma pequena redução no gasto militar, sem comprometer o tão querido superávit primário.
Se não são os coiotes ou o custo econômico, quais são as justificativas para a ação brasileira? A primeira parece ser a dificuldade do governo brasileiro de entender a dinâmica migratória como fator de desenvolvimento de um país. Esta miopia estratégica não é nova, mas toma dimensões maiores, na medida em que o país cresce em economia, presença externa e visibilidade. O dinamismo populacional da imigração, quando bem aproveitado, traz mão de obra, diversidade de novos elementos educacionais, culturais e políticos. Traz, por fim a riqueza.  Muitos países e o próprio têm histórias que comprovam isto. Ainda hoje, as nações mais ricas do mundo aplicam políticas para tirarem proveito da dinâmica migratória.
Ao lado do desconhecimento da migração como elemento de desenvolvimento e influência, a política brasileira pode ser explicada por um tipo de razão ausente de informes, mas que se mostra no imaginário e nos rumores. Na região da fronteira, principalmente no Acre, onde os haitianos estavam, recorrentes boatos foram registrados pela imprensa local, em denuncias à polícia e até em discursos políticos. Primeiramente, espalhou-se que haveria uma “doença haitiana”, uma praga espalhada por este diminuto contingente. Na realidade, nada além de alguns casos de dengue (doença inexistente no Haiti e, portanto contraída aqui) e cólera, agravados pela desnutrição que atingia quase 70% do grupo. Não fosse suficiente a falsa praga, foram periódicos também os rumores de tráfico de drogas, estupros e até canibalismo, etc. Nada se comprovou, mesmo após investigações feitas pela polícia civil.  A única certeza é que o governo brasileiro, alertado formalmente por ONGs, demorou 18 meses para enviar uma simples missão sanitária aos postos de apoio aos imigrantes.
Além dos boatos, espalhou-se no imaginário a ideia dos haitianos como um grupo indolente e desqualificado, em busca de escolas e não de trabalho. O levantamento feito em um dos postos de atendimento mostrou exatamente o contrário: a média de escolaridade do grupo que tentava entrar no país era até superior à média brasileira. A maioria tinha formação educacional, com curso secundário, técnico ou mesmo superior.  Afora a capacidade, eles traziam a coragem e a disposição de trabalharem duramente para ajudarem suas famílias. Noutras palavras, eram imigrantes ideais, menos aos olhos do governo.
Os boatos e estereótipos, por mais estapafúrdios que sejam, dizem mais do que informes oficiais acerca do único motivo que resta para reação do governo: O preconceito. De outra forma, como explicar uma política que nega abrigo a pouquíssimos imigrantes, em sua maioria, qualificados, oriundos de um país no qual Brasil demonstra interesse porque mantém um caro contingente militar expatriado há 12 anos? Como explicar que tenham sido reservados menos vistos para os haitianos do que para europeus? E que o governo brasileiro cobre o equivalente a 3 meses de renda média de um haitiano por uma solicitação de visto? O que equivale a quase 50 vezes mais do que o mesmo visto custa para um norte-americano. Como explicar o fato de um governo democrático, com uma chancelaria altamente qualificada não ter conseguido abrir  nenhum canal de comunicação, e assim ter negado aos haitianos acampados na fronteira, a possibilidade, o direito de falarem por si?
A pergunta incomoda é: seria a política a mesma se os haitianos fossem brancos e ricos? Todos os indícios tristemente apontam para uma resposta negativa. A atitude do governo, mesmo que não intencionalmente, transmite a ideia de ainda somos um país aonde imigrantes negros só são bem vindos amarrados em porões de navio.

Potencia e Prepotência
Quando, nas décadas passadas, Japão, EUA ou países europeus expulsavam nossos imigrantes econômicos, acuávamos-lhes de arrogância, de preconceito e de falta de solidariedade. Quando franceses extraditam nossos garimpeiros ilegais da Guiana, são imperialistas e insensíveis às mazelas sociais. Quando os paraguaios tentam restringir a presença dos fazendeiros brasileiros, prontamente os denunciamos como ingratos aos benefícios que nossos cidadãos trouxeram ao seu país. Imigração nos olhos dos outros é refresco.
O Brasil não só tem condições de absorver adequadamente um número muito maior de haitianos do que o estipulado na famigerada cota, como tem o dever de fazê-lo e ganharia muito se o fizesse. Há razões de toda sorte para receber os haitianos, sejam econômicas (A economia brasileira em crescimento, as dimensões e capacidade de absorção, as possibilidades de proveito com imigração); sejam políticas (o aumento da responsabilidade internacional do país); acima de todas, há as razões morais. A ajuda é uma obrigação moral das nações que podem mais e deveria mais ainda sê-lo no Brasil, um país que deve muito do que é a imigrantes (voluntários ou forçados). Não nos faltam razões para rever a débil e retrógrada política quanto aos imigrantes haitianos.
A política brasileira com relação aos haitianos (que em menor medida também é aplicada a bolivianos e africanos) é nefasta porque se baseia em preconceitos e na atitude de país grande, que a si se basta. Estes são dois ingredientes perigosos, mas comuns no comportamento das potências mundial que fizeram e fazem vítimas. Uma política justa com os haitianos seria um importante contraponto a esses ingredientes indesejados. Agir corretamente com os haitianos é por em atos nossa batalha contra os preconceitos que tanto negamos e, no entanto confirmamos cotidianamente. Os preconceitos que não aparecem nos rankings econômicos exitosos nem no imaginário vendido externa e internamente de país mestiço e harmônico. Os mesmos preconceitos que nos fazem um país ainda profundamente desigual.
A revisão da política com os haitianos é uma excelente oportunidade de fazer um país melhor para com o próprio povo brasileiro. Uma chance de mudança nesta longa jornada que o país ainda precisa fazer para ser uma nação justa, de aliar crescimento econômico a um paradigma mais justo de sociedade.  Por outro lado, perder esta oportunidade é aumentar o risco de nos tornarmos o que sempre criticamos: uma potência prepotente.
Antes que me esqueça, Já dissera Caetano: ”Pense no Haiti...O Haiti é aqui”.