"a transformação misteriosa da existência com que
somente os mortos podem interferir na vida" Sandór Marai
Elas ficavam no mesmo endereço. Tinham o mesmo CEP.
Para os desavisados, como eu era, pareciam todas um só lugar. Um só e sólido.
Não eram nem uma, nem outra. Sua estrutura era o cimento
pintado que eu via. Não entendia que suas paredes eram feitas de matéria
fugaz. Não via, de tanto ver, que a casa éramos nós.
E, na minha primeira perda desavisada, perdi nossa
casa.
Era o preço por se tornar adulto. Perder nossa
casa. Mas, confesso que, na época, não me parecia caro. Parecía paga, prazerosa.
Não atinava que perdia. Iludia-me que na vida
acumula-se.
Em defesa daquele adolescente, poderia dizer que a
perda é inevitável. Melhor que ocorra logo, ou ficamos como aquele cão que
visitava o túmulo de seu dono, levando um graveto, na esperança inútil de
brincar novamente.
Não me dei conta de minha derradeira passagem pela
nossa casa.
Mas, não entendo porque caminhos mentais, de nossa
casa não sinto saudades. Vejo-a como uma foto de um estranho. Não dói.
Porém, sinto saudades de sua casa. E dela, repetido
em minha amnésia, também não me lembro da última visita ao lugar que era seu.
Lugar que sem você se tornou um não lugar. Um símbolo do desencaixe que
compartilho com todos meus semelhantes.
Seu lugar me faz falta. Sua casa era um pedaço de
certeza. A última fortaleza. Não sinto saudades das paredes. Sua casa não eram
paredes. Era uma argamassa emoldurada. Móveis, Sons de dentro. Barulhos de
fora. A janela, tela da rua. Os vizinhos e o som da campainha. O cheiro quente
do fogão. A mesa com papéis ticados. Sua rubrica.
As pessoas não estavam dentro da casa. Fazíamos
parte da argamassa. Todos juntos, misturados como tijolos a formar uma
arquitetura do pertencimento tenso.
Paredes descascam, Tijolos racham, quebram-se e
caem. Há pequenos buracos. Reformas vêm. Transmutações de sons e cheiros. Mesmo
pendente, às vezes até capenga, o seu cimento intangível continuava a nos
segurar, anos equilibrar na precária estrutura da casa. Você a fazia continuar casa,
mesmo que já não me cabia. Ainda cabia quem fui. Tinha espaço para quem meus
filhos seriam.
No inevitável último dia de sua casa, sem você, a
soma das perdas venceu as presenças. Memórias não segurariam a casa. Não havia
mais presente. Havia ruínas. A casa se tornou um monumento arqueológico. Uma
tumba de reminiscências.
Neste dia, não havia mais deslocamento porque
ninguém mais pertence àquele lugar. Só os mortos a gritar sua ausência.
Sua casa virou tumulo. Uma casa por fim, desabrigada.
Sobrava o tangível de uma construção, uma casca já
não habitada pelos vivos. Casa assombrada.
A tela da janela vira uma fotografia amarelada. Estática. A
morte de uma paisagem. Lá habita um quarto dos fundos, que vive fechado, com
objetos empoeirados da memória. Quarto difícil de abrir, porque a poeira acorda
a alergia do choro.
Chegara a hora de abandonar a casa ou ser enterrado
com ela. Hora de contabilizar perdas ou se perder.
Assim, quando por fim, e igualmente desmemoriado, visitei
pela última vez a casa de sua viúva, dela já não tinha nada."Tudo estava desejo, tudo certo". Não me lembro e não sinto remorsos da amnésia. Tudo o que
restara, já estava habitado em mim.
Não pertenço mais à casa, ela afinal é que me
pertence.
“Primeiro
habitamos em casas, depois as casas habitam em nós” EM
30 DE ABRIL DE 2016, ANO 6 D.A.