sexta-feira

Marco e a Surpresa

“Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.” (Manoel de Barros)

Cinto de segurança, fones de ouvidos, livro na mão, sapatos no chão, janela fechada. Meu “modo avião” prestes a ser ativado. Até que a chegada agitada de um menino, em seus 5-6 anos, que se sentou na cadeira ao lado, interrompeu meu ritual de desligamento. Nas cadeiras do outro lado do corredor, ele era observado por uma mulher em seus 35 (sua mãe?) e por uma menina, ainda menor que meu novo vizinho. 
Ele me olhou firmemente. Tirei os fones. Sem exórdio, como diria um jurássico professor de oratória, ele disparou:

-Hola, soy Marco, tengo 5, soy grande e ya puedo sentarme solo. Mi hermanita es pequeña, llora por todo. ¿Tu estás con tu mamá?
Ri da lógica impecável (“estar sozinho é ser grande”) e respondi que estava só. Marco concluiu, olhando não para mim, mas para janela:
-Eres grande tambien.
Como Marco olhava hipnotizado para a janela, perguntei se ele queria trocar de lugar. Não respondeu verbalmente, desceu da poltrona, sob olhares falsamente reprovadores da mãe. Entendi e me movi. Reassentado, ele olha para fora, volta e me diz:
- Dios vive em en el Cielo. Quiero verlo por la ventana. ¿Ya viste Dios por la ventana?
Neguei com a cabeça. Pensei que só veria a Deus se o voo não chegasse ao destino. Mas, guardei o pensamento mórbido e só sorri. Marco seguiu:
- Mi mamá me dijo que nunca se ha podido ver Dios por la ventana. Pero, puede ser que hoy se pueda.
Marco, grande para sentar sozinho, ainda era pequeno suficiente para se abrir para uma surpresa. Sorte dele.

Enquanto todos atentavam para Roma, onde “César Augusto”, todo-poderoso com seus decretos, parecia conduzir injusta e violentamente, os destinos da humanidade, o ventre de uma desconhecida adolescente trairia a ruptura (Lucas 2:1-6). O primeiro Natal foi uma surpresa. Não havia jurisprudência. Nenhuma série histórica a validar tal hipótese. Quem iria imaginar que Deus, aquele que não podia nem ser representando em figura de tão inalcançável, encarnaria? E em uma criança plebeia? E como filho concebido fora do casamento? Quem poderia esperar que Deus usaria, como terminal de desembarque no mundo para seu Cristo, um estábulo emprestado, em uma cidade irrelevante, de uma província tão desprezível que nem um rei de verdade tinha?
Esperavam seus destinos de Roma, Esperavam a salvação através de um Messias-Rei, à frente de um exército irrompendo majestosamente pela capital. Esperavam Deus em templos, sua majestade em Palácios, queriam ver Seus sinais em rituais. Ouvi-lo através de textos sagrados rebuscados, por homens “diferenciados”, sacerdotes em roupas especiais. Buscavam encontra-lo com dia e hora marcada.
Porém, o Deus, que tinham por previsível, obediente a teologia que fizeram, controlado por suas teorias e regras, surpreendeu. Quebrou lógicas, espaços, geografias, códigos, hierarquias. Tão inovador que não foi nem reconhecido. Estava disfarçado de criança, clandestino em uma “garagem”. Aqueles que primeiro foram avisados não estavam no centro. Assustados, acostumados apenas às más notícias de Roma, foram avisados que as pistas para acharem o “Maioral” não eram um óbvio palácio, nem a figura batida de um super-herói musculoso, nem esperados mantos reluzentes. Deveriam procurar por um “um bebê envolto em panos e deitado numa manjedoura" (11-12).  A presença óbvia e invisível de Deus, a salvação preparada “à vista de todos os povos” (31).
Não sei, mas desconfio que qté hoje seja assim. Deus não segue nossos scripts. Não se confina aos espaços que lhe dedicamos. Não nos fala na língua que lhe atribuímos. Não vem nas datas que lhe reservamos. Segue livre, inverte lógicas, humilha nossos pretensos saberes, despreza nossas tentativas de controla-lo, ignora nossas previsões.
Para alguns, o Natal pode até não ser um tempo alegre.  Afinal, nada mais chato do que a obrigação da alegria (Agualusa). Mas, é um #ficaadica divino da possibilidade, da surpresa, da verdade da disrupção de Deus. Um lembrete de que não sabemos o que virá, de que podemos esperar até contra a esperança, de que devemos esperar a visita inesperada, de maneiras que não sabemos, não prevemos e que não controlaremos. Mesmo quando parece que nunca haverá “paz na terra”, quando olhamos e pensamos que não há “homens (ou mulheres) aos quais Deus concede o seu favor"(14), quando na nossa timeline só haja más notícias de Roma, o Natal é um lembrete de que, “nasceu o Salvador que é Cristo (11).

Marco fitou a sua janela/presente e não se virou. Eu voltei para meu “modo avião”. Em algum momento, o sono nos venceu a ambos. No destino, antes de sair, ele agradeceu e me deu um sorriso descarado e vitorioso de quem tinha visto Deus pela janela. Olhos contentes de Simeão, de quem pode se despedir porque “já viu a Tua Salvação” (30).
Desde então, só viajo com a janela aberta.

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