sexta-feira

Tribunal do Espelho

 

Nessa manhã, os Jornais dizem que o Covid19 matou 100.000.

No espelho, um acusador discorda. Ele diz que eu matei, sou assassinato em massa.

Tentei argumentar com meu acusador. Eu cumpro minha parte no isolamento social. Eu não votei nesse governo, não tenho poder, nem influência para mudar comportamentos. Não fiquei omisso e até expus, em redes sociais, minha indignação, usei hashtags engajadas, publiquei logo antifascista, marchei virtualmente por George Floyd, e tudo mais. Então, eu não poderia ser acusado.

Meu acusador disse que tudo o que eu afirmei é verdade.  Mas, mesmo assim, sou culpado. Ele me lembrou que, como sociedade, partilhamos sucessos. Não projetei foguetes, mas fui as Lua. Sou muito ruim de bola, mas sou pentacampeão mundial de futebol. Nunca articulei um acordo de paz, mas acabei com conflitos.

E, assim como os sucessos, partilhamos responsabilidades.

Alemães, nascidas décadas depois do Holocausto, assumem até hoje as responsabilidades pelas atrocidades. Japoneses do século 21 pagam reparações por erros de 50 anos atrás. Canadense e australianos, que nunca foram colonos, e talvez nem tenham visto um Inuit ou um Torreano, adotam reparações a descentes dos que foram escravizados e expropriados, com aval do Estado, há 200 anos. Noruegueses de hoje compensam a devastação florestal de seus bisavôs. Brasileiros, que nasceram já sob a redemocratização, pagam indenizações a presos políticos da Ditadura.

Meu acusador me lembra que, com a subnotificação percebida no aumento de morte por SRAS e afins, cerca de 120.000 brasileiros morreram por Covid, até hoje.  Replico: as mortes são por conta da letalidade do vírus, das ineficiências do SUS e da desigualdade.

Mas, meu acusador traz os números: 80.000 pessoas teriam morrido a menos, se tivéssemos usado a mesma políticas e comportamento da Argentina ou Uruguai, ambos com infraestrutura em saúde equivalente à nossa. Ou ainda, que 52.000 estariam vivos, se tivéssemos feito o mesmo que a, tão desigual quanto nós, Colômbia fez. Ele nem mencionou os 108.000, que teriam sido salvos das covas, se tivéssemos a coragem dos neozelandeses. Todas, estimativas já levando em conta o tamanho da população de cada país.

Meu acusador concluiu, ao comparar com países de níveis de infecção, socioeconômicos e desigualdades próximos ao nosso, que pelo menos 60.000 mortes não podem ser atribuídas à inevitabilidade da doença, nem falta de recursos do Estado, nem ainda a desigualdade vergonhosa. São 60.000 assassinatos inequívocos.

Alguns atores têm papel ativo, são protagonistas na matança. Mas, outros como eu, mesmo sem participar, são partícipes a contragosto. Mesmo que não deliquamos juntos, faço parte do bando, liderado por um governante com vocação de carrasco, cercado por seu séquito de “queixos-mascarados”, em seus churrascos de gado criado na dilapidação da floresta, de uma sociedade que não se responsabiliza nem por si, nem pelos outros.  Mesmo que busque os dados, a Ciência e a moralidade coletiva, sou parte de um bando, que inventa suas notícias, deturpa a religião para justificar a sobrevivência às custas da carne do outro.

Apenas confissão de culpa, esse veredicto seria tão irrelevante quanto meu papel. Geraria uma culpa hipócrita, mais um desprezo às vítimas. A dura constatação de que divido a culpa pelos atos de minha sociedade e, mais importante, que tenho que assumir as consequências, precisa ser pedagógica. A ideia de responsabilidade coletiva contribui para uma intolerância à barbárie e àqueles que a defendem. É a consciência da corresponsabilidade que leva um país a estruturar instituições, promulgar leis, criar hábitos de respeito à vida. A consciência da responsabilidade coletiva é uma ação para uma sociedade não repetir erros, a melhor prevenção para novos crimes coletivos.

Nesta manhã, um assassino me olhou no espelho.


Eduardo Albuquerque, IEA-FEA. 

texto publicado no Boletim FEA USP, 7-8-2020