“É um grupo de reflexão de alto nível.
Só tem fera e é na casa do Rubão”.
Fui. Quando pela primeira vez cheguei
naquele portão verde de formas arabescas, em uma noite de 3af, a idade era
pouca para tanta arrogância. Vinha com um livro debaixo do braço, comprado em
sebo e cheio de notas pretenciosas. Mesmo ansioso, estava preparado para
debater com toda a profundidade, coisa que então eu achava importante.
Tinha
lido todos os textos dele. Admirava-o em papel.
Não estava preparado para ele. Dizia
e se desdizia. Teatral, provocador gentil, desbocado, com gestos tênues de dramaticidade.
Sem dramas mexicanos, um drama mineiro mesmo, de Boa Esperança. Mesmo que já não
aceitasse nenhuma etiqueta de pertencimento, fosse a uma religião, a uma instituição
ou a uma profissão, comportava-se com um verdadeiro protestante. Destruía ídolos
e rasgava hierarquias sacerdotais.
No meio das citações, ele olha
para mim, apoiado em uma estante no lado contrário da sala e diz algo parecido
com: “Não se preocupe. Mesmo com o peso
das ideias, a estante não vai cair. Todo riem. Eu finjo que rio. E continua:
“Você é novo aqui. O que é novo não tem
lugar, mas não quer dizer que não pertença. No novo, todo lugar ainda é uma possibilidade
e um incomodo ao mesmo tempo”.
Mesmo voltando em outras reuniões
(de regularidade irregular), continuei novo naquele lugar. Acho que graças àquelas reuniões, quero ser
novo em todo lugar onde estou, até hoje.
Uma 3a feira após a outra, entre histórias,
citações de todas as origens, ele me ensinou que e “a coisa mais certa de todas
as coisas não vale um caminho sob o sol”. Que não há saber de verdade que não seja
transtornado pela vontade do amor.
Ele dizia que para ser professor
é preciso antes des-professar. Largar as profissões de fé é o um ato de fé
verdadeiro, ensinava, mesmo sem querer ensinar. Ele foi meu primeiro des-professor
e me ensinou algo da difícil tarefa de desacreditar com esperança, de encarar o
que não tem resposta com a resposta do amor.
Antes daquelas reuniões, não só
achava que sabia alguma coisa, achava que saber valia alguma coisa. E Rubão, como
o Lobo Mal (que ele dizia que era o único personagem são da história), desmontava
facilmente minhas casas de palha de convicções.
Irônico, mas talvez o que aprendi
com meu desprofessor, Rubem Alves, possa ser expresso com uma frase do Joao
Ubaldo, transmutado da vida para a memória, ontem: “O segredo da Verdade é o
seguinte: não existem fatos, só existem histórias”. E Rubem Alves foi um grande
contador de histórias. Isto irritava os que esperavam dele verdades inexoráveis,
juízos e anátemas.
Não o vi por décadas. Ouvia que
ele apostatou, que se corrompeu, que enlouqueceu; não necessariamente nesta
ordem. Nada disso fazia sentido para mim. Afinal, só pode se desviar quem segue
para um rumo. E ele nunca foi um acadêmico com propósitos nem missionário de
causa nenhuma.
Há uns anos, reencontrei-o em um aeroporto.
Mencionei as reuniões, talvez esperando alguma menção nostálgica. Ele,
sarrista: “Você não acreditou naquelas loucuras que eu dizia, acreditou?” E
riu. A resposta me confirmava que, embora a barba houvesse sumido e a cabeça estivesse
mais enrugada, o meu primeiro desprofessor seguia ali.
Foi Rubão a primeira pessoa a me
mostrar a fragilidade das verdades de papel. De que o super-homem, com certezas
definitivas para qualquer pergunta, é um projeto ridículo e desumano. Que a religião
que mata o sorriso é do diabo. Se Evangelho é a boa nova que nos transforma,
Rubem Alves foi um dos meus evangelizadores.