quinta-feira

METEORITO



Não me podia a Sorte dar guarida
Por eu não ser dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,

Fiel à palavra dada e à idéia tida.
Tudo mais é com Deus!

 (Fernando Pessoa)
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Noutro dia, acordei Carpe Diem. Nestes dias quando você promete fazer algo diferente. Um ato ímpar que torne seu dia memorável.
É um bom sentimento. Mas, de difícil execução. A rotina nos protege, a natureza adora a repetição.
Vestir a cueca para fora da calça? Ir trabalhar com as pantufas do Mickey da minha filha? Há formas mais originais de se expor ao ridículo. 
Logo no elevador, pensei em agarrar a vizinha. Risco grande. Além do divórcio, o mais provável é que meu gesto impetuoso fosse visto como agressão.  Não poderia mais ser candidato a senador, nem a síndico do prédio.  
Na padaria, pensei em pedir cappuccino, ao invés da mesma média profundamente escura. Não consegui. A única coisa memorável no cappuccino seria o gosto de mistura indecifrável.
Na primeira reunião virtual do dia, comecei com um rock. Mas, como a internet estava ruim (rotina), os demais participantes pensaram que se tratava de microfonia. Em uma resposta que deveria ser padrão, fiz uma proposta radical de mudança de tudo e mais uns 5%. Meu chefe respondeu: Interessante, no próximo ano a gente conversa.
E assim passei o dia, cheio de tentativas malogradas de rompimento.
No final da tarde, depois de mais uma reunião, voltava para casa, derrotado pela mesmice. A caminho do estacionamento, passei em frente a uma lotérica. Fila longa. Mega-Sena acumulada.
Nunca joguei. Sou de uma espécie de pessimismo turrão. Daqueles que acreditam em estatísticas. Análise probabilística simples. Nunca joguei na Mega-Sena pelo mesmo motivo que nunca inseri proteção contra meteoritos na apólice do seguro de meu carro. Afinal, ser atingido por um meteorito é algo que tem a mesma chance de ganhar na Mega-Sena acumulada.
Minha virgindade na Mega-Sena combinada com minha falta de habilidade com a bola e com minha pobreza de samba no pé seriam motivos para cassar minha cidadania brasileira.
Se a inabilidade com o futebol e com o samba não poderiam ser resolvidos, poderia diminuir minha brecha com outra identidade nacional. Pensei na minha promessa Carpe Diem.  Entrei na fila.
E que fila! Daria um estudo antropológico. Um grupo mais heterogêneo que o arco de alianças governo.
Um executivo em seu terno bem cortado. Olhava o I-Phone, talvez conferisse o fechamento da bolsa.
Duas senhoras já há muitos anos com direto o de à fila preferencial, falantes, com caras de saídas do bingo da igreja. Tentavam a sorte em algo maior do que um jogo de panelas.
Um jovem, pelo menos era o que parecia ser por detrás da franja assimétrica. Usava uma calça de uma cor igual às dos lápis que ficam intactos no meu estojo.
Uma mulher, pelos seus 35-40 anos. Aliança de design tradicional no médio esquerdo. A julgar pelos cabelos ainda molhados, o vestido preto levemente amarrotado e pela cara amarrada, talvez buscasse a prometida sorte no jogo para os que têm azar no amor. 
Uma moça envelhecida precocemente, quem sabe pela vida dura que seus olhos carregavam.
Um rapaz, em uniforme de chef de fast-food, olhava o celular com impaciência. Acho que deixara algo no fogo.
E assim a fila seguia, com tipos de todos os tipos. O IBOPE deveria fazer pesquisa eleitoral em fila de Mega-Sena. Melhor amostra impossível. Dela só ficam de fora os que acreditam em meteoritos. E estes votam “nulo” porque sabem que tudo vai dar errado.
Não sou do tipo de me sentir intimo. Chamo garçom de senhor, bato na porta do quarto de meus filhos, desde que eles nem tinham altura para alcançar a maçaneta. Mas, uma fila de Mega-Sena gera um tipo de intimidade instantânea. Em minutos, estávamos todos conversando.
O executivo com um olho no I-Phone e outro no vestido preto: 
- Estimam em mais de 100 milhões o prêmio.
A senhora do bingo sábia emenda:
- Eu nem quero ganhar sozinha. Muito dinheiro atrapalha.
- Por mim, qualquer coisa já mudava minha vida, desde que desse para sair do aluguel, ajudar minha mãe, colocar meus filhos na melhor escola do mundo. Declarou altruísta a moça do cansaço nos olhos.
O chef de fast-food:
- A primeira coisa que eu faria seria jogar fora todos os meus relógios, principalmente o meu despertador.
O rapaz em sua calça caneta-marca-texto tirou a franja do cabelo e emendou:
- E eu atirava o meu na cabeça do meu chefe.
- Jesus vai me abençoar e vou ganhar. Comprar um barco enorme e sumir. Afirmou com fé, a mulher dos cabelos molhados.
- E você? Fez a pergunta a mulher dos cabelos molhados.
- Eu? Não tenho a mínima ideia.
- Mentira. Todo mundo tem um plano, sentenciou a morena.
Pensei em dizer que compraria uma passagem no barco dela, mas a julgar pela cara brava, poderia apanhar. E se fosse para arriscar, tentado minhas chances com a vizinha no elevador, logo de manhã.
Ninguém acreditava que não tivesse um sonho para aquela fila.
Viajar? Pago para ficar. Já viajei por umas 3 vidas.
Parar de trabalhar? Ficaria entediado em 15 dias.
Telefonar para uma meia-dúzia de pessoas e xingar até a 6ª encarnação delas? Mesmo milionário, ligaria 5 minutos depois, para pedir desculpas. Era capaz de ainda dividir o prêmio com eles, por remorso dos meus impropérios.


Poderia morar em um apartamento 3Xs maior? Dirigir um automóvel cujo IPVA custasse o valor do meu atual carro? Comprar vinhos de 1000 euros a garrafa? Almoçar todo dia no Fasano? Parar de trabalhar e ficar só escrevendo livros? Poderia tudo isto. Mas, penso na solidão de um apartamento de 500mts, na inutilidade de um carro caro. Quase sinto tédio que seria comer trufas 3 vezes por semana, nos 1000 tipos vinhos de R$50,00 que ainda quero experimentar. E constato que, mesmo se escrevesse mais livros do que Paulo Coelho, todos teriam um só assunto e ninguém os leria.
Adoraria ter muito dinheiro e nunca mais me preocupar com isto, claro. Seria bom poder solucionar qualquer problema que o dinheiro resolve.

Mas, os desejos irrealizados (há outro tipo?) que tenho até poderiam ser impulsionados, mas não se resolveriam com os milhões da Mega-Sena. Eles estão além. não do saldo bancário, mas fora dos limites de minha coragem ou para além da capacidade do meu estoque genético.
Ali na fila, concluí que não tinha planos consistentes para meus futuros 100 milhões. Talvez nunca tenha jogado por essa minha pobreza de imaginação.  

As pessoas não jogam para ganhar, apostam pelo direito de sonhar o que fazer com o prêmio. Privilégio só de quem tem um bilhete.  Joga-se por um plano para a sorte. Por uma solução, um sonho, um alívio que o dinheiro trará. Acreditam, por mais que saibam que é mais fácil ser atingido por um meteorito.
Percebi que não tinha direito de estar naquela fila. Desejei sorte a todos meus recém conhecidos velhos amigos. Fui.
Quando eu descobrir a resposta, volto para a fila.
100 milhões são suficientes para construir um escudo à prova de meteoritos?


segunda-feira

QUAL É A SUA LAIA?

Eu roubei. Vandalizei patrimônio público. provoquei danos ao patrimônio privado. Fraudei. Receptei produto roubado. Usei arma branca ilegal. Trafiquei. E tudo isto, antes dos 13 anos.

Afanei acessórios do Falcon (art. 155). Pichei as paredes da minha escola (art.163). Furei os pneus de um professor que havia se recusado a dar uma segunda prova para um amigo (depredação). Falsifiquei minha carteira escolar (art. 297) e entreguei trabalhos em nome de outra pessoa (art. 297), em troca de uma mochila que ele roubara do irmão (receptação dolosa, art. 180). Andava com um “Chaco” (art. 19, contravenção). E uma vez comprei de um aluno do colegial, um cigarro de maconha que repassei para outro amigo, em troca de algum lucro (art. 33, na época).

Ufa, Edu. Você quase me assustou com este papo de roubo, tráfico, fraude. Pensei que fosse algo sério. Mas, estas coisas eram comuns... 

Sim, eu não fui exceção. Na minha turma, as fichas dos meus amigos eram parecidas ou até mais extensas do que a minha. Os mais santos invadiam  (pulavam o muro de um terreno particular para jogar futebol) ou ameaçavam professores por cartas anônimas 
(NOTA: carta é um meio de comunicação, onde através de um instrumento, não um aplicativo, chamado de caneta, escreve-se com tinta química em um papel e depois, guardado em um envelope, envia-se por um serviço de logística, conhecido por Correios, para o endereço físico de alguém).

Não importa qual fosse o ato, era necessário transgredir para ser aceito. Os certinhos eram considerados “Crianças”, a maior ofensa que um adolescente pode ouvir. 

Talvez minhas transgressões viessem do conflito entre o que eu era porque achava que devia ser (um CDF, como eram chamados os nerds, primogênito e bom religioso) e o cara que eu queria ser para ser aceito (um corajoso transgressor). 

Talvez. Nunca soube das causas. Não estavam preocupados em achar um bode expiatório pseudo-científico.  Por fatores totalmente alheios à minha vontade e/ou esforço (cor da pele, condição econômica, apoio familiar, amigos, tutores informais, etc.), mesmo quando apanhado no delito (e fui pego algumas vezes), não fui enviado para um presídio infanto-juvenil. No máximo recebi ”prisão-domiciliar”. Sentenças como: 2 dias sem televisão e sem sair do quarto. Ou uma multa: Neste mês, não tem mesada, espertinho. 

Não fui abusado. Não fui tratado com violência. Deram-me o benefício da segunda, terceira, quarta chances. Oportunidades de reparar, de recomeçar. Afinal, aquilo era considerado “normal para a idade”. 

Com o tempo, por obra deste entorno favorável e por aquilo que os cristãos chamam Graça, os descrentes, de Sorte e os economistas de Privilégios (mas, que todos concordam ser imerecido e de difícil explicação) eu e minha turma fomos aprendendo formas de expressão e rebeldia que não implicavam em ferir, nem violar os direitos de outros, e, muito menos ainda, os nossos próprios. 

Eu e minha turma fomos exercendo outras formas de coragem. Assim crescemos e hoje seguimos, boa parte do tempo pelo menos, a lei (não tenho nenhum amigo de adolescência que tenha ido para o PCC, nem  para a política ou CBF).

Mas, outros meninos (pobres e, em sua maioria negros, moradores de áreas estigmatizadas, etc.) que transgridam não são vistos como eu e meus amigos de classe média foram.

De nós diziam: Vocês têm um grande futuro pela frente, têm potencial, são gente de boa índole, etc.
Agora, sobre os outros meninos dizemos: Não têm futuro. Pau que nasce torto, nunca se endireita. Já nasceu bandido! Já vem torto de nascença, filho de bandido já nasce errado. Nem adianta tentar, não tem família! Esta laia tem que morrer, Morreu? Um bandido a menos! Dá porrada para Aprender! etc.

Eu e meus amigos ouvíamos que precisávamos de apoio psicológico, de igreja, de família, de boas amizades, de vergonha na cara, de maturidade ou mesmo de um castigo (uma privação temporária de alguma diversão) etc.
Esses outros meninos ouvem que precisam de presídios ou mesmo de morte por balas pagas pelos nossos impostos. Eles são “casos perdidos”. Se juntos, não são turma, são quadrilha. Não são amigos, são comparsas.

Se não bastasse o que nós, “estranhos”, pensamos e não-fazemos a respeito desses outros meninos  que transgridam. Se não fosse suficiente a política de extermínio oficial (pelas mãos da PM) que silenciosamente apoiamos. Ainda por cima, poucos deses outros meninos têm no seu entorno fatores e/ou pessoas que possam ajuda-los nos conflitos, apoia-los nas dificuldades materiais e/ou não, mostrar-lhes exemplos de que é possível crescer sem se tornar violento, de que existe uma masculinidade positiva, de que a injustiça que eles vivem não será diminuída pela violência, etc, etc.

Alguns escapam. Não porque tenhamos, nós a maioria da sociedade adulta, algum mérito nisto. Em alguns destes casos é por obra de alguns e algumas benditos(as) dissonantes, que acreditam neles. Em outros,que me desculpem descrentes e/ou economistas, é apenas pela Graça mesmo.

Condenar uma criança ou adolescente a não sair do ciclo de transgressão ou desistir de um ser humano que mal atingiu 1/6 de sua vida é o mesmo que negar nossa própria humanidade.

Por isto, digo que conheço bem a “laia” desses outros meninos. Não são outros. São iguais a mim, iguais a maioria de nós. São da mesma laia que eu, a laia dos humanos. 
Já sobre a laia dos que não demonstram misericórdia por eles...


quarta-feira

Carta a X (Maria Ribeiro)

Carta para X.
Somos todas Genis, e teu nome vai voltar pra você ainda mais bonito

Por Maria Ribeiro

01/06/16

Cara X.,

Estranho não poder dizer seu nome, tão bonito. De uma música que eu adoro, do Edu Lobo e do Chico. Não sei se você conhece. Se é o seu tipo de música (como se a gente só tivesse um tipo de música e não fosse mudando de acordo com o tempo...). Ainda mais você, que só tem dezesseis. Se bem que não é “só”.

Dezesseis pode ser muito. Pra mim foi.

Na tua idade eu gostava de Bob Marley e tinha falta de ar. Achava que era asma, mas, como também doía o peito, vi que não era só isso. Nenhum remédio dava jeito, e piorava muito nos finais de semana. Meu pediatra, em nosso derradeiro encontro, receitou Valium — um calmante um tanto forte e hoje praticamente “de época” —, mas, como meu irmão foi totalmente contra, acabei voltando pra um Tylenol, que dava sono.

Sem química e sem ar, passei a frequentar um grupo de jovens de uma igreja ali na Gávea. Pra ver se passava a tristeza. A gente rezava cantando e dançando, tipo um baile funk só que com Jesus. Devia ter feito análise, mas meu pai não deixou. A irmã dele se matou com trinta e poucos anos, então ele não podia ouvir as expressões “angústia” e “terapia”.

Mas hoje eu faço, duas vezes por semana. Você também tá fazendo, não é? A minha é freudiana (eu acho). Não pergunto pra minha analista essa coisa de linha porque ela vai falar que isso não importa. Mas eu acho que importa, sim. Porque o Freud escreveu muito sobre sexualidade, e a minha não era lá das mais plenas: muita aula de religião nunca dá certo... Você tá na escola? Em que ano? Tem uma matéria de que goste mais?

Demorei pra querer crescer. Pra achar bom ser mulher. Porque na minha casa — de classe média alta e supostamente feliz — não era. Meu pai, a quem eu amava profundamente, mandava. Minha mãe — que hoje é casada com uma cara incrível, preciso dizer — obedecia, e todo mundo era meio propriedade dele, numa violência naturalizada e inconsciente. Homem grita, homem manda, homem decide.

Você tem um filho, não é? Eu também. Dois, na verdade. Tenho dois filhos homens. E um neto, Caetano. Sim, meu filho Bento, de seis anos, tem um boneco a quem chama de filho, de quem cuida diariamente, o que inacreditavelmente ainda gera surpresa tanto na escola — ainda omissa nas questões de gênero — como na rua, pelo simples fato dele ser menino.

Temos uma responsabilidade muito grande, cara X. Porque a gente vive neste país onde o Bolsonaro diz o que bem entende sobre estupro e tortura e não vai preso. Onde o secretário executivo de governo do Rio relativiza o episódio de agressão no qual esteve envolvido sete anos atrás perguntando “quem nunca perdeu o controle numa discussão?”.

Onde Alexandre Frota, que já disse na televisão, entre risos, ter estuprado uma mãe de santo — não vou classificá-lo como ator pornô porque respeito a categoria —, é recebido com honrarias pelo ministro da Educação, Mendonça Filho. Onde o ministério do presidente interino Michel Temer — aquele que mantém sua jovem mulher no lar, e que, assim como faziam os coronéis, deu seu nome ao filho macho — é todo composto por homens, e digo “homens” com profundo incômodo, como se o referido elenco ferisse a palavra.

Não tá fácil. E você só tem dezesseis. Mas olha: depois dos vinte melhora consideravelmente. Arrisco dizer que aos trinta fica quase bom. E até lá tem muita coisa que ajuda, se você quiser depois te faço uma lista de livros e filmes que fazem a maior companhia, “Thelma e Louise” (Ridley Scott) pode ser o primeiro.

Neste fim de semana, aliás, vi um filme — tudo bem que cheio de clichês — chamado “A garota do livro”. Você costuma ir ao cinema? A direção, da americana Marya Cohn, é óbvia e no limite do cafona, mas a trajetória da protagonista é bonita e afirmativa, uma mulher que precisa rever um trauma pra se recolocar no mundo. É um filme sobre abuso e invisibilidade, feminista como deve ser este ano de 2016.

Porque, a despeito da nebulosidade — até pra você — que ainda cerca o teu estupro, e da espetacularização da notícia (por favor, não dê mais entrevistas), estamos diante de uma antiga tragédia brasileira: a ausência de um programa de planejamento familiar, de uma escola forte e uma política que discuta o acesso ao aborto para meninas de baixa renda, já que as ricas o fazem com segurança e clandestinamente. Ser mãe aos treze já te torna vítima, cara X. A proteção que agora o Estado diz te oferecer está mais do que atrasada. Mas não foi pra isso que eu quis te escrever, e sim por causa da música do Chico. Não vai ficar assim, companheira. Somos todas Genis, e teu nome vai voltar pra você ainda mais bonito.

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PS: Escrevi esta carta ouvindo o disco da Elza Soares, “A mulher do fim do mundo”. “Cadê meu celular?/ Eu vou ligar prum oito zero/ Vou entregar teu nome/ E explicar meu endereço/ Aqui você não entra mais.” O álbum é todo uma obra-prima, e devia ser ouvido em salas de aula.

sábado

CASAS


"a transformação misteriosa da existência com que somente os mortos podem interferir na vida" Sandór Marai

Elas ficavam no mesmo endereço. Tinham o mesmo CEP. Para os desavisados, como eu era, pareciam todas um só lugar. Um só e sólido.

Não eram nem uma, nem outra. Sua estrutura era o cimento pintado que eu via. Não entendia que suas paredes eram feitas de matéria fugaz. Não via, de tanto ver, que a casa éramos nós.

E, na minha primeira perda desavisada, perdi nossa casa.

Era o preço por se tornar adulto. Perder nossa casa. Mas, confesso que, na época, não me parecia caro. Parecía paga, prazerosa.

Não atinava que perdia. Iludia-me que na vida acumula-se.

Em defesa daquele adolescente, poderia dizer que a perda é inevitável. Melhor que ocorra logo, ou ficamos como aquele cão que visitava o túmulo de seu dono, levando um graveto, na esperança inútil de brincar novamente.

Não me dei conta de minha derradeira passagem pela nossa casa.

Mas, não entendo porque caminhos mentais, de nossa casa não sinto saudades. Vejo-a como uma foto de um estranho. Não dói.

Porém, sinto saudades de sua casa. E dela, repetido em minha amnésia, também não me lembro da última visita ao lugar que era seu. Lugar que sem você se tornou um não lugar. Um símbolo do desencaixe que compartilho com todos meus semelhantes.

Seu lugar me faz falta. Sua casa era um pedaço de certeza. A última fortaleza. Não sinto saudades das paredes. Sua casa não eram paredes. Era uma argamassa emoldurada. Móveis, Sons de dentro. Barulhos de fora. A janela, tela da rua. Os vizinhos e o som da campainha. O cheiro quente do fogão. A mesa com papéis ticados. Sua rubrica.

As pessoas não estavam dentro da casa. Fazíamos parte da argamassa. Todos juntos, misturados como tijolos a formar uma arquitetura do pertencimento tenso. 

Paredes descascam, Tijolos racham, quebram-se e caem. Há pequenos buracos. Reformas vêm. Transmutações de sons e cheiros. Mesmo pendente, às vezes até capenga, o seu cimento intangível continuava a nos segurar, anos equilibrar na precária estrutura da casa. Você a fazia continuar casa, mesmo que já não me cabia. Ainda cabia quem fui. Tinha espaço para quem meus filhos seriam.

No inevitável último dia de sua casa, sem você, a soma das perdas venceu as presenças. Memórias não segurariam a casa. Não havia mais presente. Havia ruínas. A casa se tornou um monumento arqueológico. Uma tumba de reminiscências.

Neste dia, não havia mais deslocamento porque ninguém mais pertence àquele lugar. Só os mortos a gritar sua ausência.

Sua casa virou tumulo. Uma casa por fim, desabrigada.

Sobrava o tangível de uma construção, uma casca já não habitada pelos vivos. Casa assombrada.

 A tela da janela vira uma fotografia amarelada. Estática. A morte de uma paisagem. Lá habita um quarto dos fundos, que vive fechado, com objetos empoeirados da memória. Quarto difícil de abrir, porque a poeira acorda a alergia do choro.

Chegara a hora de abandonar a casa ou ser enterrado com ela. Hora de contabilizar perdas ou se perder.

Assim, quando por fim, e igualmente desmemoriado, visitei pela última vez a casa de sua viúva, dela já não tinha nada."Tudo estava desejo,  tudo certo". Não me lembro e não sinto remorsos da amnésia.  Tudo o que restara, já estava habitado em mim.

Não pertenço mais à casa, ela afinal é que me pertence.

 “Primeiro habitamos em casas, depois as casas habitam em nós” EM


30 DE ABRIL DE 2016, ANO 6 D.A.

quinta-feira

Carla e a Faixa de Ônibus: UM HORROR!



Recentemente instalaram uma faixa exclusiva para ônibus na principal avenida do bairro, conhecido por seus condôminos de classe média alta e mansões. Mas, também por bairros populares rotulados como “favelas”

A população de SUVs e mesmo a de carros populares logo se revoltou contra a medida. Afinal, a já complicada Giovanni agora estava ainda mais restrita.


Desde então, tenho escutado nas padarias, bancas e elevadores do bairro diversos protestos. Começam todos pela exigência: Eliminar as faixas exclusivas para ônibus. Como me enxergam como igual (morador e monitorizado), escuto mais do que o protesto, as ideias que baseiam sua opinião sobre a faixa. Para proteger minha fonte, vou chama-la “Carla”, 37 anos, gerente de marketing (atualmente em "sabático"), casada, dois filhos. Carla mora em um apartamento de 100 M2, com varanda gourmet, mas praticamente sem cozinha, em um condomínio com “kids fun area”, que os avós dela insistem em chamar de “parquinho”.

- Um absurdo este trânsito, não? Culpa destas faixas de ônibus. Já não tem espaço decente para os carros e ainda querem reservar espaço par ônibus? Deveriam acabar com isto.

- E os ônibus?

- Sinto muito. Isto não é meu problema. Cada um resolva os seus problemas. Meu avô chegou ao Brasil só com a roupa do corpo e vendendo tecido de porta em porta construiu uma empresa, comprou terrenos. Ninguém deu nada de graça para ele, nem uma faixa de ônibus para ele andar. 

- Onde colocaríamos os ônibus?

- Em algum lugar bem longe, na periferia. Melhor  não ter ônibus no bairro. As ruas são estreitas. Outro dia não consegui passar minha Santa Fé junto com uma Pathfinder e até batemos os espelhos. Acredita? Ainda querem colocar ônibus? O governo que  o quê mais? que eu ande de carro pequeno? 

- E as pessoas que precisam do ônibus?

- Podem andar. Andar faz bem e previne doenças. Eu pago 400 por mês na academia. Os pobres teriam isto de graça, a Giovanni tem inclinação positiva e negativa, perfeito.

- Os pobres andariam?

- Sim, mas não todos juntos. Muito pobre junto deixa a calçada feia. Eles podem andar espaçadamente, de forma a não atrapalharia. A gente precisa entrar no estacionamento de uma loja ou manobrar e sempre tem alguém na calçada. Depois processam a gente se são atropelados. A culpa é sempre do motorista. Uma prima minha disse que tem uma vizinha que tem uma empregada que contou que os primos dela vivem só de dar golpe do atropelamento. Acredita? Um horror!

- Mas, são muitas pessoas que usam ônibus.

- Então, este é o problema. Para que tanto pobre circulando? Deveriam fazer uma escala.

- Mas, no comércio do bairro, sua empregada. Como eles chegariam ao trabalho?

- Igual em Israel que organiza isto com os palestinos: Um passe. Se tem algo para fazer no bairro, teria um passe que autorizaria a transitar em um só trajeto e na hora certa. Isto já diminuiria muito o fluxo. 

- E o restante?

- Ficaria em casa. Economiza e é melhor para a cidade. Se eu fosse pobre, circularia o mínimo possível, teria vergonha.

- Mas, ainda haveria muitos carros, motos..

- Um horror! Deveríamos proibir os carros mais antigos. Exceto os de colecionador. Moto, só quando uma pessoa pede um delivery. E a faixa do ônibus poderia ser realocada para quem tem carro melhor.

- Eliminar a faixa, os ônibus, reduzir a circulação dos pobres ao mínimo...

- E aproveitar e acabar com esta palhaçada de faixa par bicicleta. Pouca gente usa. estas faixas vão estimular o povo a sair de bicicleta, umas bicicletas horríveis, chinesas, de 100 reais. Vai ter mais atropelamentos, mais processos. Faixa de bicicleta, só no Domingo...

- Então, onde não há demanda prévia, a prefeitura não deve criar vias?

- Sim.

- Então, para que duas pontes novas? Hoje nenhum carro navega o rio. Eles ó usam as pontes existentes. Logo, não há demanda hoje, não se deveriam criar vias para estimula-las.

- Brincalhão, você. Agora, bem que poderiam por um pedágio, um sem-parar igual em Miami, para não ter carro velho, ônibus. Se os pobres encherem as pontes, não vai resolver nada. 

- Carla, estão te chamando. Acho que você deixou seu carro em fila dupla...

- Não é minha culpa, não tinha vaga e nem vallet. Um horror!

quarta-feira

AFINAL, O QUE QUEREM MEUS INTERLOCUTORES?

Depois de anos ouvindo as mesmas histórias, piadinhas e reclamações dos muitos de meus conhecidos, vizinhos, parentes e até dos amigos, elaborei a plataforma de 13 itens para a cidade que eles querem, mesmo que não digam abertamente, ver implantadoss pelo próximo prefeito:


1. Extinção de todas as faixas exclusivas de ônibus


2. Criação de Faixas exclusivas para quem paga mais IPVA

3. Transformação das ciclovias e ciclo faixas em estacionamentos.

4. Ciclo-faixas somente aos feriados e domingos para lazer, em área caras e restritas a bicicletas com valor superior a 1SM.

5. Extinção dos radares de velocidade (exceto os que estão na frente de minha casa)

6. Isenção de todas as multas para carros com menos de 5 anos e com IPVA superior a 2SMs; exceto para veículos que me atrapalham.

7. Transformação de todos os agentes de trânsito em valets, aplicáveis somente aos veículos isentos de multa, descritos no item anterior.

8. Pedágio urbano para moradores da periferia, aplicável para caso queiram entrar nas áreas mais caras da cidade.

9. Isenção de IPTU para quem tem “varanda gourmet” e sobretaxa de IPTU para residências com fachadas inacabadas ou bandeiras da Gaviões da Fiel afixadas.

10. Redução de 50% dos recursos da saúde, educação e assistência social e estabelecimento de uma loteria para decidir que pobres poderiam ter acesso a estes serviços.

11. Destinação dos recursos economizados com o item anterior para a construção de mais viadutos e avenidas; desde que não atrapalhem minha rua nem nas que uso para me deslocar.

12. Proibição da atividade de motoboy, exceto os que trazem minha pizza, meus remédios e meus documentos.

13. Suspensão de qualquer atividade de laser ou cultura ao ar livre gratuita, principalmente, carnaval de rua e com a participação de artistas de apelo popular e/ou orientação sexual que eu queria ter, mas não tenho coragem de admitir.


Se comprometido com esta plataforma "moderna", qualquer candidato (desde que não seja negro e saiba combinar gravata com as abotoaduras) terá o voto destes meus amigos, conhecidos e vizinhos.



Quanto a mim e aos demais, cabe-nos calar, rir das piadas racistas ou elitistas ou procurar outro endereço. Afinal somos culpados indefensáveis por não endossar a visão de uma cidade dedicada a 25% da população.