quarta-feira

DEUS E O GATO


 

Aos 14 anos estudei Física, ao menos com esse nome, pela primeira vez. Estava no ensino médio e tinha um professor extraordinário. Para a maioria, era bom porque dava pontos extras por trabalho. Para mim, que na época esnobava os pontos extras, desafiava-me com citações de cientistas, histórias e dilemas morais. Queria que fôssemos além da decoreba de fórmulas, dos exercícios tolos de laboratórios. Fui.


Apaixonei-me de cara pela Mecânica Newtoniana, tudo explicado, cada elemento em seu lugar, todos seguindo leis imutáveis, harmônicas, em uma marcha elegante. Lembro-me da empolgação de quem descobre um segredo, da primeira epifania, da segurança adulta advinda das certezas. Como nas paixões adolescentes, o prazer das descobertas foi logo seguido de um desânimo, do desprezo de quem já não tem o que achar. Meu Universo foi se desencantando, a cada aula, a cada leitura na Biblioteca Central. E eu com ele, desencantado. E assim, a explicação de tudo, minha paixão, logo se transmutou em broxantes equações prontas, finalizadas.  o descoberto, inicialmente oceânico, tornou-se uma poça diante do não explicado.


Nesse estado de desânimo, no final daquele ano, fui pego pela irresistível atração  gravitacional de um gato. O bichano morto e vivo de Schrödinger me levou à Física do Século 20, ao midiático Einstein da língua para fora e, principalmente ao jovem Heisenberg, em seus tormentos aos ventos ateus da Ilha de Helgoland. Re encantado ou talvez apenas incomodado, parti para aquelas férias com um presente de meu professor, um livro que tentava explicar, ou melhor, “desexplicar” o que eu pensava ser óbvio. Dois meses e paginas gastas de areia, mar e desespero depois, voltava eu, em estado de pura dúvida.


O que um adolescente, sem formação nem ferramentas, conseguira entender,  era a profunda crise vinda da convicção de que a realidade ao meu redor era uma invenção, no máximo, uma versão. No centro da minha crise, a questão do TEMPO. A ideia do TEMPO como conceito gramatical, um truque conceitual. Não mais o tempo fato, verdade. Só o parâmetro de uma realidade, só existente na medida em que se relaciona. Isto me fustigava, tecia nós górdios em meus neurônios imaturos. Leituras e as inúmeras evidências que lia não me deixaram descartar aquilo, como quem joga fora uma religião. Isso me atormentou a ponto de procurar um amigo mais velho, estudante de Teologia, meu “coaching” espiritual, se esta palavra fosse usada na época.  Entre um  beirute do Wells e um tanjal , ele ouvia minhas questões. Anos depois, confessaria não ter entendido nada do que eu dizia, ter cogitado que meu estado pudesse estar ligado a alguma narcose ou, pior, a algum tormento de origem diabólica. Mas, na hora, apenas engatou um discurso de preocupação de que a “ciência” estaria me levando para longe de Deus. Foi minha vez de não entender nada. O que eu trazia era, para mim, uma experiência de fé, não um afastamento. Na falta de uma ideia melhor, meu amigo citou  Deuteronômio (os conhecimentos ocultos pertencem a Deus…) e fez uma oração por mim.  Quem sabe ele foi respondido, mas de outra maneira.


Mais tarde, quando fui retribuir o presente ao meu professor, com outro livro, compartilhei minhas inquietudes. Ele riu e me disse que tudo o que conhecemos só o alcançamos por meio do tempo e do corpo (massa). Na relação que estabelecemos. Não há conhecimento humano que possa vivenciar o que não está contido no tempo, nem o que não tem estado corpóreo (mesmo que seja traduzido em uma reação sináptica).  Mesmo que nossa Ciência possa descrever, prever e comprovar coisas como sincronicidade e sobreposição, estas não seriam experiências ao nosso alcance. Mais ainda, que o tempo, percebido pelo corpo (que encapsula todos os sentidos), é nossa prisão ajardinada. Se no Universo das pequenas e das grandes coisas o tempo é irrelevante e a massa é até negativa,  para nós, os habitantes do mundo do meio, eles são nossos potenciais e limites, nossa humanidade. Deus, por definição, seria um ser meta corpóreo e atemporal (ou supra temporal?), logo , é impossível entender o mundo como Ele entende.


Sem nenhum versículo nem reza (até hoje não sei a religião desse professor, se é que  ele tinha uma), recebi ali uma bênção: uma contra ideia que reorientou minha percepção de Deus, pecado original e redenção. A Árvore do Conhecimento, tornou-se o conhecimento/consciência do tempo. Tempo é um parâmetro decorativo para Deus, porque Ele tem software (ou será hardware?) para rodar isso como metáfora, não como realidade. Mas para nós, o mundo do meio, é a infraestrutura determinante. O tempo e sua linearidade eram nosso fardo, por querermos ser iguais a Deus, sem termos como. A redenção, feita por um ser corpóreo histórico (que estava e não estava no tempo, depende de quem olhasse), que promove a superação de causas-efeitos, antes-depois, vida-morte. Nossa vida, uma sequência de superposições em múltiplos quase existentes. Deus, o cara que, não é atemporal, mas está fora e dentro do tempo, fez possível o que não existia, tornara uma não realidade o que me pareceria inexorável em sobreposição o que não era  possível”. 


Eu e a Física seguimos nossas conversas, sempre limitadas pelo fato de que, a Física não aprende minha língua, e eu sigo com precário conhecimento do seu idioma. Mas, nunca mais deixei de desconfiar de que qualquer gramática (ciência, discurso, teologia ou experiência) seria apenas capaz de descrever sombras, intervalos. Na época a grande inexorabilidade do tempo, a morte, ainda me era um conceito quase teórico, no máximo, distante.


Hoje, o tempo bate distinto. Ele me referencia ausências e anuncia iminentes ocasos. Parece imóvel, quando não vejo avanços. Soa retroceder, ao presenciar a marcha anti cvlizatória. Ajuda-me, hoje mais do que em 1982, ouvir os ventos de Hargoland, pensar na realidade como relação, não com estado; uma entropia mais do que no apagamento. Essas coisas que não entendo, mas que se provam verdade no dia a dia, ajudam- me a despedir-me do tempo, ainda fascinado pelas possibilidades anti factual de que a morte nem existe.


Assim, Heisenberg (e não Newton) com sua Física de intervalos , incertezas e saltos tem me ajudado a não querer explicar tudo, a não ver o visível como a única possibilidade.  Pelo ponto de vista de nós, os corpos prisioneiros do tempo, sigo com a impressão de que Deus, como o gato de Schrödinger, nunca esteve na caixa.

FAZ DE CONTA QUE FOI NATAL


January 4, 2022


O carro passa rente a um desfiladeiro, atingido por lava e pedras fumegantes, de um vulcão. Escorrega e caminha para o fundo. “Fiquem tranquilos”, diz o motorista, ao seus passageiros, seu avô, seus primos e seu vizinho. Aciona seu escudo anti-meteoros. Acelera, usando a potência de um ruidoso foguete, e segue pelo abismo, na vertical, até o trunfo final. Todos ficam impressionados e ele sabe que é o melhor piloto do mundo. Do universo, já que, na sequência, pega um telefone e combina algo. Diz para o avô ficar no carro porque combinou de reencontrar a “bisa”, que está no céu, algo parecido com uma fazenda no espaço. Pensa que será bom, quer mostrar uns truques novos de dominó e atualizar sobre as notícias. Com um botão, seu bólido vira nave e começa sua jornada de reencontro.

Até que seu voo é interrompido por uma voz potente: “devolve aqui esta lata!”. Nesse momento, o carro-nave volta a ser uma lata de sardinhas, surrupiada da pia. O piloto herói, em seus cinco anos, sai contrariado. Esperto, não tem escudo anti-bronca. O mundo, do piloto imune à dor e ao fracasso, do telefone para o céu, desaparece. Ficará escondido, até a próxima aventura, até o dia em que, crescido, o menino não se lembrará mais como transformar uma lata em uma nave.

Crianças têm o poder de criar mundos. Forjam universos onde morte, fraqueza, conflitos e escassez não existem. Onde as Leis da Física e dos humanos são determinadas pelo coração. Mundos que deveriam ser, mas que foram abortados pelo mundo que é. Mundos que “esqueceram de acontecer” e se rebelam em lapsos infantis.

Lembro de uma criança, que irrompeu, que interrompeu uma História que foi, que é, a história da opressão, da condenação, da separação, do ódio e de seu irmão discreto e cruel, a indiferença.

A Criança que reimaginou a história da morte, que a reescreveu na “versão do diretor”. Nela, o amor, superpoder, dá o pão de cada dia, o vinho da festa, a cura da doença, o perdão do erro; dá a própria vida pelo outro, sempre próximo. Um mundo, onde quem dá recebe; quem perde acha; quem é o último chega primeiro; onde o menor é um gigante; onde o doido é o sabido; e quem não tem nada é o mais rico.

O mundo que deveria existir, que virá a existir, imortal, reconciliado, amado. O mundo reimaginado, agora possível porque uma Criança nasceu.


(texto inspirado na história de Matheus, neto do Carlinhos que fala com a bisavó, através de um telefone desligado, desligado da terra, mas ligado no coração.)