quarta-feira

Maria e o Chato (Natal)

Pedro, meu sobrinho, quando tinha 5 anos, sentenciou: - “Dudu, você é chato”.
Pedro tem razão. E um chato que honre este título é chato até com o Natal. Não me entenda mal. Eu gosto de Natal. Gosto do clima todo. Divirto-me em ver shopping - center cheio pela TV. Desfruto da moleza do calor úmido do fim de ano. Aprecio a sensação de pausa mundial. Gosto da quebra simbólica que parece zerar tudo. Começar novamente. O clima de “reset game” me consola.
Gosto do Natal, não gosto da imagem. Implico (sou chato, lembra?) com a típica mensagem do natal, com o recall da marca. A idéia cândida da ocasião. Os sininhos pra cá. As estrelinhas pra lá. Com o “todos os seus sonhos se realizem trololó”, “tudo o que você merece tralalá”. Afinal, “todo mundo é filho-de-deus bla bla", "bate o sino pequenino de Belém, blen, blen.
Minha chatice implica com as imagens do natal exclusivamente sereno. Com a trilha sonora do coral afinado de anjos. Com o brilho, os dourados e o glitter. Antipatizo com a natureza estilizada, domada na falsa árvore e na deslocada neve de algodão. Isto sem falar na minha bronca especial, já conhecida: o forçado bonachão Papai-Noel. Sempre sorrindo. Bem alimentado. Entre um ho-ho-ho e outro, distribui presentes aos que foram bonzinhos. E exclui rebeldes e desobedientes. O Natal reduzido a presentes de uma cultura onde todos nos achamos credores merecidos de um universo que existe para nos fazer felizes.
Nada contra um clima bucólico, vez por outra. Mas, o "Natal de Maria" mostra que há mais. Revela uma mensagem ausente de nossos cartões de final de ano. Sim, Maria teve um natal só dela. Em bom português de marketing: Um “Private Christmas Event” rsrsrs. Uns meses antes da famosa cena da manjedoura. A primeira expressão dela sobre o Natal, o nascimento do salvador.
Uma jovem em seus 15, 16 anos. Uma adolescente nos parâmetros de hoje. Grávida, prometida, mas ainda solteira. Longe de sua cidade, na casa da prima, também grávida.  Tempo para pensar. Primeira gravidez. Anjos com mensagens cifradas. Seria aceita por José? O que significava o filho que carregava? Promessas e dúvidas.
Ela vê Deus irromper literalmente dentro de si. Não se sente sozinha, nem triste. A criança a faz a mulher mais bem-aventurada, feliz do mundo. Profundamente grávida de alegria.
No canto conhecido como Magnificat (da primeira palavra, em latim), Maria descreve o seu sentimento natalino. E o que é o Natal de Maria? Não é anúncio de superficialidades nem tapinhas nas costas.  É um natal que lida com os temas profundos da história: o poder, a opressão, a dor, a impotência e a esperança.
No canto de Maria, não existe um deus neutro, nem amiguinho de todos. A mensagem de Natal de Maria não dá ibope. Não gera consensos. Anuncia: - “Perdeu, playboy”. Não é uma boa notícia para todos. Os ricos não ganham presentes, são despedidos de “mãos vazias”. Reis são derrubados. A mensagem desagradará aos muitos herodes. Despertará a ira assassina dos que se beneficiam da injustiça.
O Natal de Maria anuncia a Justiça. E isto é briga. Deus levanta o braço, pesa a mão. Não há acordo com o mal. Não há trégua com a opressão. Não há paz possível entre “orgulhosos e humildes”. A paz anunciada pelo menino não é uma banal “sala de espera confortável”. É a paz da Justiça.
Maria se alegra com a justiça de um Deus que irrompe na história, dela e do mundo. Natal do anúncio da bênção através de uma mulher, jovem, moradora de uma cidade pequena, na beira de um reino dependente, na periferia de um império em crise.
O Natal de Maria é o dos pequenos, anuncia a esperança da transformação pelo avesso de uma sociedade perversa. Os indigentes são os VIPs. O louco é o sábio. O impuro é o santo. Não é o natal do trenó, de renas de nariz cintilante, nem das carruagens. É o Natal do jumento. No presépio de Maria, reis só cabem se ajoelhados diante do menino, esvaziados dos seus palácios e submetidos ao cheiro do estábulo. Só tem lugar para os que seguem uma estrela e não para os que querem ser seguidos.
O "Natal de Maria" não é um show, está mais para uma revolução.  Não releva, revela. É o anúncio de Alegria, Esperança e Justiça. É um convite à transformação de tod@s, até de um chato como eu.
Um Natal de Maria para tod@s nós.

Magnificat (Evangelho de São Lucas, Capítulo1)
E Maria disse: Minha alma glorifica ao Senhor,
meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador,
porque olhou para sua pobre serva. Por isto, desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações,
porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso e cujo nome é Santo.
Sua misericórdia se estende, de geração em geração, sobre os que o temem.
Manifestou o poder do seu braço: desconcertou os corações dos soberbos.
Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes.
Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos.
Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia,
conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e sua posteridade, para sempre.

Um Amigo para Chamar de “Seu”

Era no tempo em que o bullying não havia sido inventado. Não podia protanto, processar minhas tias. Nem  obrigá-las a participar de uma palestra de um super-especialista. Vê-las sofrer diante de powerpoints ilegíveis e termos que só o palestrante compreende, porque ele mesmo os inventou. Na falta de um advogado, uma arma ou, algo pior, um consultor, tive que ouvir calado por anos.

Toda reunião de família, entre um “como cresceu” e um “está um hominho”, elas contavam histórias de indiscrições infantis. Micos mutantes, já que os relatos mudavam com o tempo. Constrangimentos que fazem qualquer adolescente querer cavar um buraco. Para si ou para as tias.

A única das histórias familiares que eu gostava, era sobre um encontro, ocorrido através de uma discagem direta quintal-quintal. Um senhor em seus 60 anos observava de sua sacada um curioso espetáculo matinal. Um gordinho de 4 anos, em roupas apertadas brincava no quintal de cimento. Deitado, dava rechonchudas braçadas em sua piscina imaginária, indiferente ao frio polar de Petrópolis.

Um dia, o gordinho percebeu que era observado. Recebeu um aceno daquele senhor magro, de pele enrugada. Diante da deixa, o gordinho teria perguntado: - Posso ser seu amigo?  A resposta positiva iniciou uma amizade profunda.

Aquele senhor seguiu, de ônibus, o gordinho, quando ele se mudou. Rio, São Paulo, Montevidéu. Teria seguido até ao Japão.  O gordinho passou férias inesquecíveis. Temporadas petropolitanas de mimos e companheirismo incondicional daquele senhor, sua esposa e filhas mais velhas.

O gordinho cresceu. Não muito. Acima de tudo, seguiu gordinho. Trocou a construção de piscinas imaginárias por outros cenários não mais reais.  As visitas a Petrópolis escassearam. Não a dedicação daquele senhor de óculos grossos e boina. Só a morte de “Seu Osvaldo”, ou simplesmente “Seu”, 15 anos depois daquele diálogo inter quintais, separou-o do gordinho.

Todos criam que “Seu Osvaldo” era uma espécie de avô substituto. Eu, o gordinho do quintal, sei que ele foi meu primeiro amigo. Talvez até hoje “Seu” seja meu modelo de amigo. Meu prumo para medir uma amizade.

“Seu” e o mito familiar do primeiro encontro me reencontraram há uns dias, quando assisti a “Como Esquecer”. O que um filme sobre fossa tem a ver com "Seu" Osvaldo? Livros, filmes, peças ou shows são co-produções. Somos protagonistas não-convidados e co-autores de toda obra que nos impacta. Assim, nalgumas chego a  reconhecer qualidades estéticas, mas não falam comigo. Noutras, a despeito de falhas, inexplicavelmente (ou talvez muito “explicavelmente” para os psicanalistas) “rola uma química”.

“Como Esquecer” é legal. Bem feito. Os diálogos são banais e a narrativa pretensamente literária. Intérpretes competentes, pero no inolvidables.  Não é uma obra prima, mas pelos caminhos tortos e sem GPS da memória trouxe-me "Seu"de volta.

Júlia, uma professora (vivida por Ana Paula Arósio) é abandonada. Chatíssima e mal-humorada, entra em um sombrio processo de lento suicídio. Após 10 minutos de filme, já torcia para que protagonista conseguisse seu intento. Nem ela se agüenta. Seria a última pessoa a você querer como amiga. Mas, Hugo (o personagem de Murilo Rosa) é diferente. Ele é um amigo "Padrão Seu”.

Muito mais que amizade, simpatia, bom papo e companhia. Hugo é um coadjuvante resoluto. Como um amigo “Padrão Seu” é. Hugo não rouba, ele ilumina a cena da amiga. Dedicado e disponível para o único drama no qual você é o protagonista, sua própria vida. Um  amigo "Padrão-Seu" não deixa de ouvir você, mesmo quando sabe que você está falando sozinho. Comprometido em ter um "Supporting role" en sua vida.

Hugo faz o papel dos 7 anões e de príncipe salvador. Cuida e abriga na floresta sombria. Desperta a princesa de seu sono auto-destrutivo. Um amigo “Padrão Seu” redime sem anunciar. Antes de querer lhe mudar, ele quer estar próximo. Aconselha sem pregar. Discorda sem sentenciar. Julga sem sentenciar.

Em uma cena, Júlia pede para que Hugo a amarre em uma cadeira. Ele resiste. Ela o xinga. Ele a olha nos olhos, pega a corda, faz o que a amiga pediu. Despede-se: - Se precisar, só me ligar. Amigos “Padrão-Seu” têm um jeito redentor próprio. Sem messianismos. Um sujeito legal, mas que não chega a ser um amigo “padrão Seu”, ao lhe ver se afogar, gritaria: - Saia daí. - Nade de través. - Vou procurar uma bóia. - Vou chamar alguém que nade bem! Alguns destes “amigos” até acusariam: - Por que você foi nadar nesta correnteza? – Eu disse para você não pular! Mas, não um amigo padrão “Seu”. Mesmo se não souber nadar, ele pula junto. Antes de oferecer ajuda, ainda é do tipo que diria: - Animado o mar aqui, não? - Quer uma ajuda para ir ao fundo? Depois, afogando-se junto, ele diria - Vamos dar uma saidinha para secar um pouco?

Um amigo “Padrão Seu” sabe que não tem a solução. A força dele é ser fraco como você. Mais fraco do que você. Ele sabe que não pode se colocar no seu lugar, ninguém pode. Ele tem a coragem de se colocar ao seu lado.

Ser amigo “Padrão Seu” não é confortável. Exige. Implica em enfrentar fanstasmas alheios, quando sua casa é também assombrada. Sentir-se só e tentar driblar a solidão do amigo. Sabe que a dor não é divisível, mas pode ser compartilhada. Tem seus buracos e assim mesmo segue ao lado do amigo, como se o destino do amigo fosse o seu.

Ser amigo “Padrão Seu” raramente terá reconhecimentos explícitos.“Não tem pódios de chegada ou beijos de namorada”.  Não se esperam retribuições. Não se espera nada. Um amigo “Padrão Seu” não é credor. Não estabelece uma relação contábil. Não têm agendas, nem livros-caixa. Um amigo "Padrão-Seu" não tem nem a garantia de que sua amizade ajudará. Não há sucesso ou fracasso.

O Hugo de “Como Esquecer” me lembrou porque até hoje resisto a usar o termo “amigo” indiscriminadamente. Fui irremediavelmente impactado pelo exigente “Padrão-Seu”. Tenho muitos “conhecidos”, “caras legais”, “colegas”, “gente boa”. Poucos são amigos “Padrão-Seu”. Poucos que são muito.

Em tempos narcisistas há pouco espaço para Hugos.  O importante é "deixar sua marca", "Agregar", ”dar presentes para si mesmo”, “buscar sua felicidade”. Buscar bater recordes inúteis. Vencer metas que serão brevemente esquecidas. Contemplar suas medalhas e homenagens para saber quem você é. Pendurar o máximo de diplomas para convencer a si de sua própria capacidade.  

Em tempos de que tudo se expõe, pouco é lembrado. Em tempos de diálogos de surdos, resta o barulho. Mas, fica o legado indelével de  uma amizade “Padrão-Seu”.
 
Mais do que grato pelos amigos “Padrão-Seu” que encontrei imerecidamente na vida, saí do cinema com uma vontade imensa de ser um “Amigo Seu” para alguém.


Belos Erros


Para um bom escritor, o sucesso de crítica pode ser mais difícil do que o fracasso. Seu nome em letras maiores do que as do título do livro. Um best-seller ainda é mais arriscado. O subtítulo de seu novo livro aparece: Do mesmo autor de XXX. Este é o momento quando o escritor se diferencia do bom vendedor de livros. Ou ele encara o risco ou segue a vida a plagiar a si mesmo. “O Filho Eterno” trouxe este dilema a Cristóvão Tezza.

“Um Erro Emocional”, é a prova de que Tezza assumiu o risco. Coragem vista logo nas primeiras linhas. Paulo, um escritor com seus “42 anos mal vividos”, inicia o livro com um discurso para Beatriz. “Cometi um erro emocional... — Eu me apaixonei por você."

Um homem tomado por um amor não convidado (há outro tipo?). Não sabe o que fazer com a inviabilidade de seu sentimento. Ou talvez de sua vida. Não quer o sentimento e precisa senti-lo desesperadamente.

Tema comum. Difícil para quem não quer se repetir. Mas Tezza, a exemplo de outros bons escritores, faz do comum o extraordinário. Estabelece uma narrativa rápida, numa falsa oralidade com a fluidez de um texto. Todo o livro se passa em um diálogo entre Paulo e Beatriz. Nele, Tezza (ou Beatriz?) fala do amor não convidado. Do charme das possibilidades irrealizadas. Amor majestoso como o quase gol de Pelé, inolvidável mais que 1000 gols existentes. Sentimentos bonitos como só as coisas nunca acontecidas podem ser.

No diálogo Paulo-Beatriz está a invencível distância da felicidade tão próxima. Como na visão de Michelangelo, os dedos do Criador chegam próximos, mas Adão jamais os tocará.

O amor que irrompe na história dos personagens, mas pela história acaba exilado. História da falação de Paulo que a tudo analise para nada entender. História de Beatriz em seu discurso desarmado e profundamente ensaiado.

Ao colocar em Beatriz (na sua conversa com a amiga Doralice) o poder da narrativa, Tezza talvez (como a maioria de nós) tenta imaginar como as mulheres que amamos nos ouvem. O que elas escutam quando dizemos o que achamos que não dizemos.

Paulo precisa de uma saída para seu labirinto. Beatriz parece saber o caminho. Parece ser o caminho. Talvez não ame Beatriz, ame o mapa que ela parece carregar. Ame as migalhas que ela deixa cair, trilha para fora da floresta ou para se perder complementamente. Um livro sobre os acertos mais significativos da vida, os erros emocionais.

sexta-feira

Era uma vez em uma Galáxia Muito, Muito Distante

Ela chegou entre um Memorando urgente e um documento atrasado.  O JN não noticiou. “Caras” não percebeu.  Lula não a recebeu no Planalto.  Nenhum candidato a mencionou no seu programa.  a “Nature” registrou.
Não é de boa educação perguntar –nem divulgar- a idade das visitas. Mas, o comitê de boas vindas acabou por descobrir. Nunca na história deste planeta, havíamos recebido uma visita tão antiga e de um lugar tão distante. Nascida quando nosso Universo -um jovem no vigor de seus 13,7 Bilhões de anos- era um bebê com pouco mais de 600 milhões de anos. Nossa ilustre visitante irrompeu há 13 bilhões de anos.
Longa jornada até que fosse vista pelo Very Large Telescop - certamente um nome dado por astrônomos homens fissurados em tamanho - da Agência Espacial Européia, nos Andes Chilenos. 13 bilhões de anos bilhões de anos para que sua luz chegasse a nós. 
E passou por maus bocados para nos alcançar. O Universo teve uma infância difícil. Era frio e escuro. Envolto por uma neblina densa. Bloqueio de Hidrogênio a eclipsar a luz das primeiras galáxias em formação.  
A luz de UDFy-38135539 -depois de bilhões de anos sem nome, arrumou um nome um tão feio, a pobre galáxia- só conseguiu romper essa barreira porque as explosões das galáxias que nasciam abriram espaço no nevoeiro. Caminho feito enquanto se caminha. No Hay camino. El camino se hace mientras se camina. Como na letra da canção de um tempo – há bilhões de anos talvez – quando a América Latina acreditava na revolução.
Atravessou névoas e  caminhou contra corrente.  O universo em expansão e a luz em regressão. Como em uma escada rolante que tentamos percorrer ao contrário. Brava viajante.
Não é uma estranha. É parente. Uma velha conhecida. Talvez pelo aperto pior do que metrô as 6:30, não nos lembremos. Há quase 14 bilhões de anos estávamos juntos, no aglomerado inicial, antes do Big-Bang. Lugar muito cheio, denso e quente.
E assim, depois de 13 bilhões de anos de uma difícil jornada, em uma tarde de Domingo, como convém a uma visitante, ela chegou.  Como toda mulher elegante, sua aparição foi impactante pero breve. Foi-se. Deixou algumas pistas sobre o caminho que fez e um rastro de espectro de luz vermelha. Ficou um redshift, uma saudade.
Tem pressa.  Seguiu sua viagem na velocidade da luz. Ainda há muito a percorrer até o destino final, onde tudo começou. Lá,  UDFy-38135539, todos os corpos celestes que ela visitou, eu, você e destinatário de meu Memorando nos reencontraremos.
Boa viagem, a gente se vê, um dia. 
Na saudade, os cientistas fizeram um vídeo que simula a viagem pelo espaço e pelo tempo até UDFy-38135539. Assisti reverentemente.  Lembrei que cada “nuvenzinha” luminosa no vídeo é uma galáxia inteira. Nelas, há bilhões de estrelas. E apoximadamente um quatrilhão de planetas a orbitarem. Em algum deles talvez haja um cara igual a mim, iludido a pensar que seu Memorando é o centro do universo.

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http://www.eso.org/public/videos/eso1041c/

sábado

Não vai Pegar Você

Tropa de Elite II marca a rendição total de Padilha ao Capitão Nascimento. O herói acidental consolida sua história e é promovido. É o homem sempre certo, ainda quando erra. Acima de todos. Narrador porque tem a verdade. O dono da história, sua história.
Tropa de Elite II é excelente Hollywood falado em Português e com cenários cariocas. Bons atores e cenografia esmerada completam a diversão com pretensões de paródia da realidade. Filé de entretenimento, longe de ser um "osso duro de roer"

Tropa de Elite II tem moral da história, como bom hollywoodiano. O sistema é corrupto. As pessoas que controlam o sistema são corruptas. O espectador é puro. É vítima dos maus. Não participa do sistema. É por ele usado e consumido. Não alimenta a corrupção. Não busca favores públicos. Não luta por privilégios. É um público santo com representantes crápulas. O culpado sempre são os outros. Entretenimento travestido de crítica social.

Não há cinzas em TEII . Ou você é Azul, corrupto (farda da PM comprada) ou é preto (cor do BOPE, o guardião da honra dos bons). Tem pitadas de Tarantino e seu humor macabro. Tem o sangue dos filmes de máfia, sem os tons amenos da fotografia de um Poderoso Chefão. Não há meio-tons. Tudo é claro em Tropa de Elite. A luz do narrador expõe a verdade: O público é "caveira", o sistema é "arregado".  
Um filme que paira acima até dos milhões de patrocínios e de isenção fiscal providos pelo sistema corrupto (claro, no caso do cinema isto não se aplica, porque é uma arte honesta por isto merece os provilégios que tem...).

O Tenente-Coronel Nascimento, acima da história, redime a todos. Na cena final, sobrevoo de Brasília, porque estamos todos acima da baixaria deles. O aparelho pisca e  indica que há vida, esperança. Para quem chora em final de novela, tocante.
Tropa de Elite II pode "pegar um", pode até "pegar geral". Mas, não se preocupe, não "vai pegar você". Pode aplaudir.

quarta-feira

METEORITO

Não me podia a Sorte dar guarida
Por eu não ser dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,

Fiel à palavra dada e à idéia tida.
Tudo mais é com Deus!

 (Fernando Pessoa)
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Noutro dia, acordei Carpe Diem. Nestes dias quando você promete fazer algo diferente. Um ato ímpar que torne seu dia memorável.
É um bom sentimento. Mas, de difícil execução. A rotina nos protege, a natureza adora a repetição.
Vestir a cueca para fora da calça? Ir trabalhar com as pantufas do Mickey da minha filha? Diferentes. Mas, há formas mais originais de se expor ao ridículo. 
Logo no elevador, pensei em agarrar a vizinha. Risco grande. Além do divórcio, o mais provável é que meu gesto impetuoso fosse visto como agressão.  Não poderia mais ser candidato a senador, nem a síndico do prédio.  
 
Na padaria, pensei em pedir cappuccino, ao invés da mesma média profundamente escura. Não consegui. A única coisa memorável no cappuccino seriam as calorias.
No final da tarde, voltava para casa, derrotado pela mesmice. Foi quando passei em frente a uma lotérica. Fila longa. Mega-Sena acumulada.
Nunca joguei. Sou de uma espécie de pessimismo turrão. Daqueles que acreditam em estatísticas. Análise probabilística simples. Nunca joguei na Mega-Sena pelo mesmo motivo que nunca inseri proteção contra meteoritos na apólice do seguro de meu carro. Afinal, ser atingido por um meteorito é algo que tem aproximadamente a mesma chance de eu ganhar na Mega-Sena acumulada.
Minha virgindade na Mega-Sena combinada com minha falta de habilidade com a bola e com minha pobreza de samba no pé seriam motivos para cassar minha cidadania.
Mas, pensei na minha promessa Carpe Diem.  Entrei na fila.
E que fila. Daria um estudo antropológico. Um grupo mais heterogêneo que o arco de alianças de Lula.

Um executivo em seu terno bem cortado. Olhava o I-Phone, talvez conferisse o fechamento da bolsa.

Duas senhoras falantes, com caras de saídas do bingo da igreja. Pode ser que tentavam a sorte em algo maior do que um jogo de panelas.

Um jovem, pelo menos era o que parecia ser por detrás da franja assimétrica. Usava uma calça de uma cor igual às dos lápis que ficavam intactos no estojo.

Uma mulher, pelos seus 35-40 anos. Aliança de design tradicional no anelar esquerdo. A julgar pelos cabelos molhados, o vestido preto levemente amarrotado  e pela cara amarrada, talvez buscasse a prometida sorte no amor para os que têm azar no jogo.
 
Uma moça envelhecida precocemente, quem sabe pela vida dura que seus olhos carregavam. Um rapaz, em uniforme de chef de fast-food, fumava com impaciência. Acho que deixara algo no fogo.
E assim a fila seguia, com tipos de todos os tipos. O IBOPE deveria fazer pesquisa eleitoral em fila de Mega-Sena. Melhor amostra impossível. Dela só ficam de fora os que acreditam em meteoritos. E estes votam “nulo” porque sabem que tudo vai dar errado.
Não sou do tipo de me sentir intimo. Chamo garçom de senhor, bato na porta do quarto de meus filhos, desde que eles nem tinham altura para alcançar a maçaneta. Mas, uma fila de Mega-Sena gera um tipo de intimidade instantânea. Em minutos, estavam todos conversando.
O executivo com um olho no I-Phone e outro no vestido preto: 
- Estimam em mais de 100 milhões o prêmio.

A senhora do bingo sábia emenda:
- Eu nem quero ganhar sozinha. Muito dinheiro atrapalha.

- Por mim, qualquer coisa já mudava minha vida, desde que desse para sair do aluguel, ajudar minha mãe, colocar meus filhos na melhor escola do mundo. Declarou altruísta a moça do cansaço nos olhos.

O chef de fast-food:
- A primeira coisa que eu faria seria jogar fora todos os meus relógios, principalmente o meu despertador.

O rapaz em sua calça caneta-marca-texto tirou a franja do cabelo e emendou:
- E eu atirava o meu na cabeça do meu chefe.

- Jesus vai me abençoar e vou ganhar. Comprar um barco enorme e sumir. Afirmou com fé, a mulher dos cabelos molhados.

- E você? Todos me encararam.
- Eu? Não tenho a mínima idéia.
- Mentira. Todo mundo tem um plano, sentenciou a morena.

Pensei em dizer que compraria uma passagem no barco dela, mas se fosse para apanhar, teria tentado minhas chances com a vizinha no elevador.

Ninguém acreditava que não tivesse um sonho para aquela fila. Viajar? Pago para ficar. Parar de trabalhar? Ficaria entediado em 15 dias. Telefonar para uma meia-dúzia de pessoas e xingar até a 6ª encarnação delas? Mesmo milionário, ligaria 5 minutos depois, para pedir desculpas. Era capaz de ainda dividir o prêmio com eles, por remorso dos meus impropérios.

Adoraria ter muito dinheiro e nunca mais me preocupar com isto, claro. Mas, os milhões de desejos que passavam pela minha cabeça até poderiam ser impulsionados, mas não se resolveriam com os milhões da Mega-Sena.

Descobri que não tinha planos consistentes para meus futuros 100 milhões.  Talvez nunca tivesse jogado pela minha pobreza de imaginação. As pessoas talvez não joguem para ganhar, apostem pelo direito de sonhar o que fazer com o prêmio. Privilégio só de quem tem um bilhete.

Joga-se por um plano para a sorte. Por uma solução, um sonho, um alívio que o dinheiro trará. Acredita-se, por mais que se saiba que é mais fácil ser atingido por um meteorito.

Não estava preparado para aquela fila. Desejei sorte a todos meus recém conhecidos velhos amigos. Fui embora. Diante da incompreensão deles. Menos um concorrente, alguns podem ter pensado.  Quando eu descobrir a resposta, volto.

100 milhões são suficientes para construir um escudo à prova de meteoritos?