quarta-feira

ÓIOS



Ribeira é uma pequena cidade no fim da estrada. Como o rio da aldeia de Caeiro/Pessoa, "quem está em Ribeira, está só em Ribeira". Ninguém passa por lá. E Ribeira não é destino de quase ninguém. É origem de um povo e de uma cidade enraizados em um tapete verde enrugado.

Há 24 anos, havia uma grande promessa de mudança para Ribeira. Uma usina hidrelétrica privada para gerar energia para fábricas de alumínio de um grande, mega grupo empresarial brasileiro. Alguns estavam excitados com a promessa do progresso, do aumento do movimento no comércio da rua central, com a chance da abertura de uma agência bancária moderna, com mais taxis na praça da igreja central, etc. O custo seria “apenas” 1/3 do município inundado, mudança no regime das cheias, das chuvas, especulação fundiária, aumento da população urbana temporária.

Há 24 anos, havia um pequeno grupo que era a moeda de troca deste progresso, o custo. Era composto de famílias agricultores, em sua maioria adventista, sem educação formal, vivendo em pequenos sítios, nas encostas do oeste da cidade, há 3 gerações. Um grupo igualitário que compartilhava modelos de produção, culturas, força de trabalho, crenças, pobreza material e a velha Kombi vermelha de “Seu José”, um dos anciãos. O grupo dos caipiras, como era chamado pelo prefeito pró-usina, defendia a permanência das famílias, a agricultura sem química, a terra dos caminhos. Uma luta sem chances, disse-me o então Promotor Público. Por 3 anos, Visão Mundial e eu tivemos um projeto em Ribeira.

Ontem voltei a Ribeira, depois de 18 anos sem pisar por lá. Fui convidado a uma cerimônia. Meio culto ecumênico, meio solenidade, inteira festa. 20 anos da inauguração formal da Associação dos Produtores Naturais de Ribeira e de sua (primeira) fábrica de açúcar mascavo e doces.  

A população rural de Ribeira hoje é maior do que há 24 anos. As pequenas propriedades ativas que ocupavam 41% do total da área, hoje representam 63%. O menor índice de concentração fundiária, entre municípios de economia rural, do Estado de São Paulo.  As fábricas (no plural, são 3) produzem açúcar mascavo e doces em muitas formulações. A produção é vendida na própria cidade, em Curitiba, Berlin, Londres e Tóquio. Um vereador decasségui, orgulhoso, fez questão de ler o rótulo em ideogramas para mim. Há mais pedidos do exterior, de São Paulo e etc. Mas, não querem ampliar a produção além do que a terra comporta nem quebrar a regra do 1/3 que criaram. Dividem o mercado em 3 fatias de 30% (uma para o mercado local, outra para o nacional e a restante para exportação). 10% são doados. O dízimo da associação.

A usina do poderoso mega grupo até hoje não saiu do projeto. Fizeram alguns estragos em obras de preparação e uma pequena barragem. Mas, uma articulação política, com vínculos nacionais e internacionais, com táticas de guerrilha conseguiu gerar sucessivos embargos ecológicos. Até sitio arqueológico acharam para atrasar o gigante. No final deste ano, as licenças de 20 anos, ainda não executadas, vencerão. Assim, a formiga vai vencendo o elefante. Melhor, as formigas vão.

O IDH de Ribeira não é dos mais altos, porque renda monetária não é algo muito comum por lá. Para que dinheiro? Mas, o IDH não sabe nada da vida das pessoas.  A longevidade em Ribeira é quase 3 anos superior a media paulista. O índice de desnutrição entre crianças é o mais baixo do estado. Ribeira está longe de ser um lugar sem problemas. Enxurradas vez por outra varrem tudo. As escolas e equipamentos públicos têm a baixa qualidade que é comum a lugares com baixa renda.  Mas, segundo o prefeito (suspeito?) só 38 pessoas se mudaram de Ribeira, no ano passado. E tudo gente que era de fora mesmo. Quem está lá, lá quer ficar. Manoel Barros disse certa vez que "Queria medir os encantos que existem nas coisas sem importância." Se fosse possível medir felicidade, perceberíamos que Ribeira é top.

Fui convidado para a festa porque foi a Visão Mundial que apoiou e animou a organização da Associação, a compra das primeiras máquinas, o primeiro programa de extensão agrícola, a primeira certificação orgânica, o primeiro plano de negócios, os primeiros advogados e eventos para enfrentar a Hidrelétrica. O primeiro apoio externo, antes mesmo que eles tivessem um CNPJ.

Em parâmetros de especialização e financiamento atuais, o que a VM fez lá é muito pouco. De fato foi pouco, foi amador, como éramos. E assim mesmo parece tão significativo e com altíssimos resultados. Talvez a explicação para este paradoxo possa ser encontrada no discurso do ex-presidente da Associação. Ele disse algo mais ou menos assim:

- Quando a Visão mundial chegou aqui, era um povo que fazia muita pergunta, dava até canseira. E eles iam para cima e para baixo  em um gol branco que parecia marrom de tão sujo, conversavam com todo mundo, do padre e até com a polícia. E eles ficavam encantados com tudo, com a cidade, com os produtos dos sítios, com a gente. Eles me diziam: vocês têm uma visão integral. Eu nem sabia o que era integral, pensava que fosse coisa de regime. Eles diziam: vocês veem tudo, o rio, a mata, a lavoura, as gentes, as famílias, a vizinhança, a produção, tudo como uma coisa só. Aí eu dizia e não é mesmo tudo junto? Tudo que tá debaixo do céu, tá ligado e ligado com o céu. Não é assim? Mas, eles ficavam bobos com nossa organização, como a gente conseguia fazer reunião de mais de 100, como a gente se ajudava.  O povo na época só dizia que aqui não tinha asfalto, que não tinha supermercado, que não tinha faculdade. E que a usina ia trazer tudo isto. Aí, eu comecei a dizer pro pessoal: Se estes moços vêm lá de São Paulo estudados e viajados e acham que a gente tem muita coisa, por que a gente precisa de uma usina para inundar tudo? Por causa de um supermercado? Pois eu prefiro minha vizinhança. Se eles acham que a gente  é inteligente, forte, sabido e capaz, por que a gente não acha isto também?

Ele então se virou para mim e disse: A gente agradece a ajuda muita que vocês deram aqui. Mas, eu agradeço mesmo é que a Visão Mundial ajudou a gente a ver que esta terra é muito bonita, que a gente tudo é muito bonito. E não é que a gente não é bonito mesmo?

As risadas varreram pelo grupo. Eu não consegui nem rir, de tão impactado.

Nesses dias que procuramos entender, medir, mostrar e vender o que fazemos, foi bom voltar a Ribeira e perceber que as máquinas que compramos já ruíram, as articulações que começamos já deram lugar a outras, que o certificado orgânico foi substituído por um internacional; mas encantamento segue lá, no discurso e na prática de resistência e construção da vida daquelas pessoas. Bom para perceber que alguns indicadores que eu achava muito importantes podem não ter mudado muito, mas que a melhoria de vida é evidente e escancarada.

Quando os discursos acabaram, reconheci um rosto enrugado, sentado em posição de honra, na mesma mesa.

-        Seu José? Lembra-se de mim?
-        Sim. O cabelo caiu um pouco, né? A barriga continua. Lá em casa tem um remédio que tira barriga.
-        Eu preciso, qual é?
-        Roçado. Tem um morro para roçar. Acaba com a barriga.
-        Bem que eu preciso. O senhor está firme como sempre. Quantos anos?
-        Pelo papel que tem lá em casa, 87. Mas tem mais uns 5, 6 anos fora do papel.
-        Festa boa. Veio bastante gente.
-        Moço, aqui tem umas para mais de 300 pessoas e ainda tem uns que sei que não puderam vir.
-        Contou tudo?
-       
Contei com os óios.  

Bem, “contar com os óios” é uma habilidade que Seu José e o povo de Ribeira sabem e que nós precisamos reaprender.


Dei partida no carro, ainda pensando no roçado, no encantamento, no que vai e no que fica. Neste momento, meu devaneio foi interrompido por uma buzina. Era o Seu José, na Kombi vermelha.