-
Preciso
falar muito com você, Edu.
-
Estou
saindo para um compromisso, Túlio.
-
Eu vou
com você, conversamos no caminho.
-
É um
velório.
-
Eu
falo baixo.
-
É no
cemitério da Consolação.
-
Excelente,
preciso visitar minha avó.
-
Ela
mora lá perto.
-
Não,
ela está enterrada lá.
Depois
de quase 30 minutos falando das dificuldades para montar os novos modelos que
eu tinha proposto (ele sempre faz isto: diz que é impossível, que sou louco;
mas, depois consegue achar as soluções), ocorreu a Túlio me fazer a pergunta
que qualquer outra pessoa já teria feito:
-
É o
velório de quem, Edu? Alguém da sua família?
-
Não, Túlio.
O pai de uma menina que eu conheci há 2 dias, Anna.
-
É
comum alguém ir ao velório do pai de alguém que se conheceu há 2 dias?
Em
qualquer outro, esta pergunta seria irônica. Para Túlio não. Ele vê tudo
binariamente. Tem dificuldades de entender o que as pessoas chamam de comum,
normal. Mesmo recém-saído de um divórcio traumático, em uma situação cheia de
cinzas, Túlio seguia a ler o mundo como uma sucessão de sins e nãos.
-
Túlio,
nada é comum nesta história.
Ele não insistiu.
Voltou para os problemas das imprecisões matemáticas que eu o estava forçando a
fazer. Só parou, quando chegamos ao velório.
Fui direto até Anna
para oferecer meus pêsames. Ela me abraçou como quem se agarra a uma boia. Pela
segunda vez, em 48 horas, desabou a chorar e, entre soluços, só dizia:
obrigada, obrigada.
Túlio, que
observava tudo como quem lê uma equação, interveio:
-
Você
já tomou chá de tília? Atrás do cemitério tem um lugar que faz e eles têm
xícaras lindas.
Senti
tanta vergonha alheia por Túlio, que tive vontade de me esconder no caixão. Mas,
o improvável aconteceu. Anna respondeu:
-
Adoro
xícaras. Vamos.
Enquanto
caminhamos até o chá, Anna perguntou para Túlio:
-
Ele te
contou como a gente se conheceu?
-
Só
disse que foi há dois dias.
Fiz
o melhor para tentar resumir.
Anteontem, esperava uma
conexão em Schiphol, Amsterdã. Sentado próximo ao portão de embarque, minha atenção
foi desviada do computador no meu colo para uma mulher que falava alto com a
atendente da Cia Aérea. Não entedia nada, deviam estar falando em Holandês. Pelos gestos nervosos, era algo sério.
Ela começou a se afastar do
balcão, andando de costas e não percebeu que havia um banco, muito menos que eu
estivesse sentado nele. Tropeçou em mim e desabou no carpete azul do aeroporto
e gritou um palavrão, em português.
Ao acudi-la, ela pediu
desculpas (eu acho que eram desculpas), em Holandês. Mas pelo palavrão, sabia
que ela era brasileira e ao responder em português, ela pareceu mais tranquila
e me contou seu drama,
-
Meu nome é Anna. Vivo aqui há 7 anos, sou
professora de literatura latino-americana em Leiden. Recebi um telefonema de casa,
nesta tarde. Meu pai foi para o hospital e os médicos disseram que não há nada
mais a fazer. Ele vai morrer em algumas horas. Preciso estar com ele. Preciso
falar com ele. Já perdi outras 2 listas de espera. Esta era minha última chance
para embarcar hoje. Mas, disseram que todos as reservas foram confirmadas.
Anna chorou na minha frente,
como se eu fosse um velho amigo. Acho que naquele momento, todo o choro
contido, desde a ligação que recebera, desaguou.
Em qualquer outra situação,
eu ficaria sem graça e hesitante. Mas, ali foi diferente. O discurso de Anna desengavetou o meu maior remorso
na vida, talvez o único que mereça este nome: Meu pai morreu, quando eu estava
longe. Nunca me perdoei por não estar com ele.
E eu, que não sou do tipo que
toma decisões impulsivas, senti que só havia uma coisa a fazer.
-
Eu cedo meu lugar para você, eles me
colocam no próximo voo.
Ela me olhou como quem não
entende. Tentou agradecer, mas começou a chorar. Fomos até o balcão. Trocamos
de lugar. De tão aliviado pela solução do problema, o supervisor Só faltou me
dar um abraço: ganhei hotel, comida e um upgrade para embarcar no voo diurno.
Anna me deu um beijo na mão e
só aí perguntou meu nome. Trocamos cartões, mas não consegui falar nada mais. Nem
ela. Não tinha nada a ser dito.
-
Meu pai
morreu, 8 horas depois de eu chegar ao hospital. Eu estava ao lado dele.
Completou
Anna
E 2 horas depois da morte
dele, ontem de noite, eu pousava em São Paulo, ainda sem entender porque me
sentia mais leve.
Hoje, quando estava na
universidade, recebi a ligação dela. Agradecia novamente a troca e me contava
da morte do pai. Perguntei sobre o velório e disse que iria até lá. Alguns
minutos depois, você me abordou e aqui estamos.
Túlio
não fez perguntas sobre o acontecido, como era de se esperar. Tinha mais dados do
que precisava.
Caminhamos
em silêncio o restante até a loja de chás. Lá, havia uma seleção de xícaras que
mais parecia uma coleção, com autores e cidades de origem. Túlio e Anna
começaram a trocar impressões sobre a melhor tipo de aba, os formatos
preferidos. Falaram de chás, infusões e
blends.
Já
de posse de nossas xícaras, não precisei de mais do que alguns minutos para
entender que eles estavam se comunicando com extrema facilidade. Que estavam se
entendendo. E que eu estava sobrando na conversa. Ao me despedir de Anna, Túlio
me disse:
-
Vou
ficar um pouco mais. Ainda tenho que visitar minha avó.
Ele
ficou mais. Eles ficaram muitas vezes mais. E hoje, passados 4 anos deste de
encontro improvável de amor, estamos aqui para o casamento de Anna e Túlio.
O que eu posso dizer de tudo isto? Nada. O que importa na vida escapa de teorias, desmente hipóteses, desdenha dos cálculos. Todas as probabilidades apontam para a impossibilidade deste momento.
Só
sei que que mesmo contra todas as chances, apesar de tanta morte, tem dias que o
amor desbrava as contradições, o desencontro e encontra seu caminho.
Que
Anna e Túlio continuem a desafiar as probabilidades e que o amor vença a morte.
Proost
A Multiplicidade do real
Paulo Leminski
Que existe mais, senão afirmar a multiplicidade do real?
A igual probabilidade dos eventos impossíveis?
A eterna troca de tudo em tudo?
A única realidade absoluta?
Seres se traduzem.
Tudo pode ser metáfora de alguma outra coisa ou de coisa
alguma.
Tudo irremediavelmente metamorfose!
A Multiplicidade do real
Paulo Leminski
Que existe mais, senão afirmar a multiplicidade do real?
A igual probabilidade dos eventos impossíveis?
A eterna troca de tudo em tudo?
A única realidade absoluta?
Seres se traduzem.
Tudo pode ser metáfora de alguma outra coisa ou de coisa
alguma.
Tudo irremediavelmente metamorfose!