terça-feira

DIAGNÓSTICO

 
Há dias que prometo não divergir. Fracasso. Como a moda é explicar tudo pelo DNA, deve ser uma degeneração genética. Uma doença que me faz acreditar na realidade, complexa, multifacetada e formada por indivíduos reais e contraditórios.

Doente, não consigo confirmar nos dados nem na experiência histórica da humanidade, o discurso de que as coisas só acontecem no Brasil. Não consigo entender como palavras mágicas como ”vontade política” e “vergonha na cara” e “educação” resolveriam imediatamente os problemas. Daí, minha séria síndrome me impede de crer em soluções rápidas e indolores. Destas que não implicam em mudanças no “status quo” da maioria. Da mesma maioria sã, justa, correta, explorada pelo Estado, vítima inocente e passiva. Os que não têm as minha doença, só conjugam os verbos responsabilizar e culpar em terceira pessoa. Sabem que os problemas são os outros. Infelizmente, eu não.
 
Atualmente, no tema de redução da maioridade penal que se percebem as mais evidentes manifestações da minha doença. A cada violência cometida e amplamente noticiada por menores de 18 anos, familiares, amigos e até o português da padaria me olham com aquela cara: Você é também culpado. E é inútil contra-argumentar com dados, com a realidade. Olham-me como doente. O sentimento dos sãos ao meu redor é um: Punir. Minha posição contrária é taxada de “teórica”, não importa quantos elementos da realidade tenha e ainda é vista como “egoísta”. Argumentam que só penso assim porque meus filhos nunca foram vítimas de uma violência perpetrada por alguém com menos de 18 anos.-E se fosse com você? - Teria vontade de matar e picar vivo. Respondo – Então você concorda com a redução? -Então nada, respondo. Meus sentimentos não podem ser parâmetro para elaboração de leis. Fosse de outra forma, também acharia que deveria ser ilegal compor Axé, usar pochete, assistir Zorra Total, ler o Chalita e defenderia a pena de morte para todos os usuários de Sertanejo Universitário :-) Diferente de mim, os sãos sabem que as respostas à violência, mesmo que ineficazes, devem ser baseadas no legítimo sentimento de injustiça e no desejo de vingança.
 
Uma pessoa com a minha doença nefasta, além do mal que me faz, ainda provoca reações indesejadas em quem me cerca. No tema da Redução da Maioridade. Eis algumas:

1.     Sorriso de escárnio, quando diz que de cada 10 crimes, 8 são cometidos por adultos. Mas os sãos “sabem” que com a redução da maioridade penal a violência cessará. Os doentes como eu, mencionam que cada 10 crimes cometidos (ou supostamente) por menores de 18 anos, 1 tem características violenta. No caso de adultos, esta taxa é mais do dobro. Logo, adultos cometem mais crimes violentos do que “menores”.

2.     Desprezo impaciente, quando argumenta que, em cada 10 crimes cometidos 7 ficam impunes. Sejam cometidos por quem forem. Ou seja, os doentes acham que a impunidade (a ineficácia na aplicação das leis) é que seria o problema. E não a falta de leis.  Há mais de 180.000 mandatos de prisão não cumpridos no Brasil. Adultos não são punidos, segundo a lei que há. Há menores impunes também, mas representam 2,9% dos que escapam da lei.

3.     Aversão, quando cita que menores de 18 anos são mais punidos do que adultos. Ou menos “impunidos” do que estes. 15.000 adolescentes estão presos no Brasil. Sendo que 8% deles já em presídios (porque faltam espaços exclusivos). Menos de 3% dos crimes no Brasil gera punições de prisão em regime fechado por mais de 3 anos. No caso dos adolescentes, quase 40% dos punidos é condenado a 3 anos de reclusão.

4.     Aborrecimento, quando menciona que prisão não resolve. As pessoas querem prisão. Não querem escutar que um preso em regime fechado em São Paulo custa R$2400,00, 2 vezes mais do que um interno da Fundação Casa, 3 vezes mais do que um aluno do ensino médio no sistema público e 30% mais do que um aluno da USP. As pessoas querem que todos sejam remetidos para o sistema penitenciário. Ninguém quer saber que este sistema prisional caríssimo é uma fábrica de sociopatas e gera reincidência maior do que 70%.
5.     Mau humor, quando lembra de que a Lei do Talião foi revogada pela Democracia. Mais do que prisão, a maioria dos sãos quer a pena de morte. E quase lincham, quando avisados que ela já existe no Brasil. Se na China, segundo a A.I., 1800 pessoas foram executadas (equivalente a 70% das execuções em todo o mundo), no Brasil mais 12000 brasileiros de 12 a 18 anos (87% deles pobres, 71% negros) serão assassinados neste ano. A pena de morte vicária (mata muitos pelo crime de poucos).
6.     Respostas hostilizadas, quando fala de soluções complexas. As do tipo que gerariam maior eficiência do sistema investigativo. Alguém já viu político se eleger com slogan: “Perícia na Rua, Já!”. As propostas do tipo que melhorariam o sistema de internação punitiva sejam das “Febens” ou dos Presídios, dando a ela alguma capacidade de reinserção. O governador que quer colocar adolescentes nos seus caros, superlotados e ineficientes presídios, é são e por isto não sabe que apenas 8% dos adolescentes tem acesso à escola em tempo integral no Estado, nem que sua polícia civil não conseguiu fazer denúncias bem sucedidas ao MP em mais 70% dos crimes que investigou. Os são sabem que são vítimas somente e que é irrelevante quem alimenta de dinheiro a corrupção pública (ilegal ou legalmente através do financiamento de campanhas), a nonegação de impostos, o consumo de mercadorias contrabandeadas/pirateadas, a indústria de armas, de drogas lícitas e a das drogas ilegais amplamente consumidas.
7.     Olhar de través, quando, ao ouvir: “estes bandidos são muito ousados”; respondem: -“o que você queria, se a pessoa não fosse ousada, seria funcionário de cartório, não bandido”.O comportamento criminoso é por sua definição amoral, ousado e de grande risco. Por isto, em todo o mundo, os jovens tendem mais ao crime do que os mais velhos. Ninguém quer ouvir que, se para estes adolescentes infratores nem a possibilidade morte os impede, muito menos a ideia de um presídio. São movidos por uma autodestrutiva motivação alimentada por uma descrença em um futuro, por uma matriz de comportamento baseada na violência que eles vivem e reproduzem.

8.     Trucidação por olhares, quando alega que não há, em nenhum país do mundo, correlação entre violência e redução da idade penal. Alias somente 12% das democracias no mundo tem idade penal abaixo dos 18 anos e, mesmo nelas, há presídios separados. A única correlação firme com violência é desigualdade. Sinto profundo nojo nos são quando é dito que a violência não acontece somente no Brasil, que a criminalidade aumenta em 7 de cada 10 países do mundo o que leva os que sofrem da crença na realidade dos fatos, a concluir ela também tenha raízes e/ou motores estruturais.
9.     Risco de vida, quando argumenta que há corrupção em todos os lugares. E que ela é essencialmente um fenômeno privado, financiada pela iniciativa privada, e assim quanto mais preocupado com os interesses privados, mais corrupto o Estado é. Vem pedrada se deliro e digo que a corrupção, além do combate legal/policial que existe, só pode ser reduzida com cidadãos baseados no interesse dos outros, com interesse e dedicação na construção e monitoramento do interesse público, inclusive no comportamento do aparato policial.

10.  Ameaça de fuzilamento, quando ventila que o fenômeno da violência é a culminação da fragmentação social, o resíduo final, o excremento de uma máquina de gerar riqueza para poucos a um altíssimo custo humano, social e ecológico. Analisando os dados de violência em todo mundo, os doentes como eu são loucos e afiram que não dá para reduzir sustentavelmente a violência criminal sem mudar as outras violências. A redução da maioridade penal teria menos efeito prático na segurança pública, do que o Felipão raspar seu bigode no esquema de jogo da seleção.

Diante de tanta dor que minha doença tem causado em meus interlocutores, decidi mandar a realidade de bilhete único para Sapopemba e buscar a cura.Afinal, os argumentos baseados na realidade são inócuos e ainda me trazem tantos problemas. Capitulado, posso propor uma solução integral, coerente com os sentimentos e o “desejo de justiça” de todos os meus impolutos e inocentes interlocutores. A plataforma decorrente da sanidade deles seria a seguinte:

1.     Abolição da idade penal, já! Como qualquer idade é arbitrária e não podemos saber quem é maduro, vamos acabar de vez qualquer restrição de idade para encarceramento nos presídios. Para que reduzir para 16 anos, se os adolescentes de 12 já estão cometendo crimes? Podemos desenhar algemas para pequenos pulsos e fraldas descartáveis poderiam substituir os uniformes prisionais nos menores de 2 anos.
 
2.     Pena de morte preventiva. É pobre? Negro? Gosta do “Racionais MC”? Executa logo. Para que esperar? Por que arriscar? Execução em massa. Tudo estará resolvido.

3.     Construção de centenas de presídios, privados e muito distantes de qualquer pessoa “sã e inocente”. Neles, haveria trabalho forçado em troca de comida. Todos os que lá chegassem, lá ficariam.

4.     Investimento maciço em aparato repressivo policial. Como na bucólica Coréia do Norte, aonde estima 80% do orçamento público seja aplicado em “Defesa”. Precisamos de muita polícia na rua. E só nas ruas onde os sãos e inocentes moram porque nos bairros da periferia, só para buscar e executar os maus.

5.     Mais polícia e menos buracos, novos tuneis e avenidas para nossos carros. Por que desperdiçar em educação? Para varrer o chão não precisam estudar. Para que saúde para os pobres? Quem não tem convênio, não merece sobreviver. Para que transporte coletivo se isto só facilita a circulação dos pobres? Melhoraríamos a segurança, a fluidez do trânsito e tudo com menos impostos.

6.    Todos os políticos deveriam ser presos, exilados, executados. Não necessariamente nesta ordem. Para que Congresso? Para que Executivo? Contrata um síndico, privatiza tudo com um sistema de atendimento eficiente como os das empresas privadas e estará tudo resolvido.
Depois de aplicada esta plataforma de soluções inteligentes, baseadas integralmente no discurso dos meus interlocutores sãos, o Brasil estará seguro, pacífico, próspero. Neste dia, só peço que se lembrem de que me rendi às suas brilhantes soluções, motivadas unicamente pelo seu desejo de justiça. E eu? Já terei sido preso, exilado e/ou executado, porque diferentemente de meus interlocutores, além de doente incurável, sou corresponsável pela situação e pela falta de soluções mágicas.

P.S.– Só que não :-)