quarta-feira

FAZ DE CONTA QUE FOI NATAL


January 4, 2022


O carro passa rente a um desfiladeiro, atingido por lava e pedras fumegantes, de um vulcão. Escorrega e caminha para o fundo. “Fiquem tranquilos”, diz o motorista, ao seus passageiros, seu avô, seus primos e seu vizinho. Aciona seu escudo anti-meteoros. Acelera, usando a potência de um ruidoso foguete, e segue pelo abismo, na vertical, até o trunfo final. Todos ficam impressionados e ele sabe que é o melhor piloto do mundo. Do universo, já que, na sequência, pega um telefone e combina algo. Diz para o avô ficar no carro porque combinou de reencontrar a “bisa”, que está no céu, algo parecido com uma fazenda no espaço. Pensa que será bom, quer mostrar uns truques novos de dominó e atualizar sobre as notícias. Com um botão, seu bólido vira nave e começa sua jornada de reencontro.

Até que seu voo é interrompido por uma voz potente: “devolve aqui esta lata!”. Nesse momento, o carro-nave volta a ser uma lata de sardinhas, surrupiada da pia. O piloto herói, em seus cinco anos, sai contrariado. Esperto, não tem escudo anti-bronca. O mundo, do piloto imune à dor e ao fracasso, do telefone para o céu, desaparece. Ficará escondido, até a próxima aventura, até o dia em que, crescido, o menino não se lembrará mais como transformar uma lata em uma nave.

Crianças têm o poder de criar mundos. Forjam universos onde morte, fraqueza, conflitos e escassez não existem. Onde as Leis da Física e dos humanos são determinadas pelo coração. Mundos que deveriam ser, mas que foram abortados pelo mundo que é. Mundos que “esqueceram de acontecer” e se rebelam em lapsos infantis.

Lembro de uma criança, que irrompeu, que interrompeu uma História que foi, que é, a história da opressão, da condenação, da separação, do ódio e de seu irmão discreto e cruel, a indiferença.

A Criança que reimaginou a história da morte, que a reescreveu na “versão do diretor”. Nela, o amor, superpoder, dá o pão de cada dia, o vinho da festa, a cura da doença, o perdão do erro; dá a própria vida pelo outro, sempre próximo. Um mundo, onde quem dá recebe; quem perde acha; quem é o último chega primeiro; onde o menor é um gigante; onde o doido é o sabido; e quem não tem nada é o mais rico.

O mundo que deveria existir, que virá a existir, imortal, reconciliado, amado. O mundo reimaginado, agora possível porque uma Criança nasceu.


(texto inspirado na história de Matheus, neto do Carlinhos que fala com a bisavó, através de um telefone desligado, desligado da terra, mas ligado no coração.)


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