quarta-feira

Um Amigo para Chamar de “Seu”

Era no tempo em que o bullying não havia sido inventado. Não podia protanto, processar minhas tias. Nem  obrigá-las a participar de uma palestra de um super-especialista. Vê-las sofrer diante de powerpoints ilegíveis e termos que só o palestrante compreende, porque ele mesmo os inventou. Na falta de um advogado, uma arma ou, algo pior, um consultor, tive que ouvir calado por anos.

Toda reunião de família, entre um “como cresceu” e um “está um hominho”, elas contavam histórias de indiscrições infantis. Micos mutantes, já que os relatos mudavam com o tempo. Constrangimentos que fazem qualquer adolescente querer cavar um buraco. Para si ou para as tias.

A única das histórias familiares que eu gostava, era sobre um encontro, ocorrido através de uma discagem direta quintal-quintal. Um senhor em seus 60 anos observava de sua sacada um curioso espetáculo matinal. Um gordinho de 4 anos, em roupas apertadas brincava no quintal de cimento. Deitado, dava rechonchudas braçadas em sua piscina imaginária, indiferente ao frio polar de Petrópolis.

Um dia, o gordinho percebeu que era observado. Recebeu um aceno daquele senhor magro, de pele enrugada. Diante da deixa, o gordinho teria perguntado: - Posso ser seu amigo?  A resposta positiva iniciou uma amizade profunda.

Aquele senhor seguiu, de ônibus, o gordinho, quando ele se mudou. Rio, São Paulo, Montevidéu. Teria seguido até ao Japão.  O gordinho passou férias inesquecíveis. Temporadas petropolitanas de mimos e companheirismo incondicional daquele senhor, sua esposa e filhas mais velhas.

O gordinho cresceu. Não muito. Acima de tudo, seguiu gordinho. Trocou a construção de piscinas imaginárias por outros cenários não mais reais.  As visitas a Petrópolis escassearam. Não a dedicação daquele senhor de óculos grossos e boina. Só a morte de “Seu Osvaldo”, ou simplesmente “Seu”, 15 anos depois daquele diálogo inter quintais, separou-o do gordinho.

Todos criam que “Seu Osvaldo” era uma espécie de avô substituto. Eu, o gordinho do quintal, sei que ele foi meu primeiro amigo. Talvez até hoje “Seu” seja meu modelo de amigo. Meu prumo para medir uma amizade.

“Seu” e o mito familiar do primeiro encontro me reencontraram há uns dias, quando assisti a “Como Esquecer”. O que um filme sobre fossa tem a ver com "Seu" Osvaldo? Livros, filmes, peças ou shows são co-produções. Somos protagonistas não-convidados e co-autores de toda obra que nos impacta. Assim, nalgumas chego a  reconhecer qualidades estéticas, mas não falam comigo. Noutras, a despeito de falhas, inexplicavelmente (ou talvez muito “explicavelmente” para os psicanalistas) “rola uma química”.

“Como Esquecer” é legal. Bem feito. Os diálogos são banais e a narrativa pretensamente literária. Intérpretes competentes, pero no inolvidables.  Não é uma obra prima, mas pelos caminhos tortos e sem GPS da memória trouxe-me "Seu"de volta.

Júlia, uma professora (vivida por Ana Paula Arósio) é abandonada. Chatíssima e mal-humorada, entra em um sombrio processo de lento suicídio. Após 10 minutos de filme, já torcia para que protagonista conseguisse seu intento. Nem ela se agüenta. Seria a última pessoa a você querer como amiga. Mas, Hugo (o personagem de Murilo Rosa) é diferente. Ele é um amigo "Padrão Seu”.

Muito mais que amizade, simpatia, bom papo e companhia. Hugo é um coadjuvante resoluto. Como um amigo “Padrão Seu” é. Hugo não rouba, ele ilumina a cena da amiga. Dedicado e disponível para o único drama no qual você é o protagonista, sua própria vida. Um  amigo "Padrão-Seu" não deixa de ouvir você, mesmo quando sabe que você está falando sozinho. Comprometido em ter um "Supporting role" en sua vida.

Hugo faz o papel dos 7 anões e de príncipe salvador. Cuida e abriga na floresta sombria. Desperta a princesa de seu sono auto-destrutivo. Um amigo “Padrão Seu” redime sem anunciar. Antes de querer lhe mudar, ele quer estar próximo. Aconselha sem pregar. Discorda sem sentenciar. Julga sem sentenciar.

Em uma cena, Júlia pede para que Hugo a amarre em uma cadeira. Ele resiste. Ela o xinga. Ele a olha nos olhos, pega a corda, faz o que a amiga pediu. Despede-se: - Se precisar, só me ligar. Amigos “Padrão-Seu” têm um jeito redentor próprio. Sem messianismos. Um sujeito legal, mas que não chega a ser um amigo “padrão Seu”, ao lhe ver se afogar, gritaria: - Saia daí. - Nade de través. - Vou procurar uma bóia. - Vou chamar alguém que nade bem! Alguns destes “amigos” até acusariam: - Por que você foi nadar nesta correnteza? – Eu disse para você não pular! Mas, não um amigo padrão “Seu”. Mesmo se não souber nadar, ele pula junto. Antes de oferecer ajuda, ainda é do tipo que diria: - Animado o mar aqui, não? - Quer uma ajuda para ir ao fundo? Depois, afogando-se junto, ele diria - Vamos dar uma saidinha para secar um pouco?

Um amigo “Padrão Seu” sabe que não tem a solução. A força dele é ser fraco como você. Mais fraco do que você. Ele sabe que não pode se colocar no seu lugar, ninguém pode. Ele tem a coragem de se colocar ao seu lado.

Ser amigo “Padrão Seu” não é confortável. Exige. Implica em enfrentar fanstasmas alheios, quando sua casa é também assombrada. Sentir-se só e tentar driblar a solidão do amigo. Sabe que a dor não é divisível, mas pode ser compartilhada. Tem seus buracos e assim mesmo segue ao lado do amigo, como se o destino do amigo fosse o seu.

Ser amigo “Padrão Seu” raramente terá reconhecimentos explícitos.“Não tem pódios de chegada ou beijos de namorada”.  Não se esperam retribuições. Não se espera nada. Um amigo “Padrão Seu” não é credor. Não estabelece uma relação contábil. Não têm agendas, nem livros-caixa. Um amigo "Padrão-Seu" não tem nem a garantia de que sua amizade ajudará. Não há sucesso ou fracasso.

O Hugo de “Como Esquecer” me lembrou porque até hoje resisto a usar o termo “amigo” indiscriminadamente. Fui irremediavelmente impactado pelo exigente “Padrão-Seu”. Tenho muitos “conhecidos”, “caras legais”, “colegas”, “gente boa”. Poucos são amigos “Padrão-Seu”. Poucos que são muito.

Em tempos narcisistas há pouco espaço para Hugos.  O importante é "deixar sua marca", "Agregar", ”dar presentes para si mesmo”, “buscar sua felicidade”. Buscar bater recordes inúteis. Vencer metas que serão brevemente esquecidas. Contemplar suas medalhas e homenagens para saber quem você é. Pendurar o máximo de diplomas para convencer a si de sua própria capacidade.  

Em tempos de que tudo se expõe, pouco é lembrado. Em tempos de diálogos de surdos, resta o barulho. Mas, fica o legado indelével de  uma amizade “Padrão-Seu”.
 
Mais do que grato pelos amigos “Padrão-Seu” que encontrei imerecidamente na vida, saí do cinema com uma vontade imensa de ser um “Amigo Seu” para alguém.


Belos Erros


Para um bom escritor, o sucesso de crítica pode ser mais difícil do que o fracasso. Seu nome em letras maiores do que as do título do livro. Um best-seller ainda é mais arriscado. O subtítulo de seu novo livro aparece: Do mesmo autor de XXX. Este é o momento quando o escritor se diferencia do bom vendedor de livros. Ou ele encara o risco ou segue a vida a plagiar a si mesmo. “O Filho Eterno” trouxe este dilema a Cristóvão Tezza.

“Um Erro Emocional”, é a prova de que Tezza assumiu o risco. Coragem vista logo nas primeiras linhas. Paulo, um escritor com seus “42 anos mal vividos”, inicia o livro com um discurso para Beatriz. “Cometi um erro emocional... — Eu me apaixonei por você."

Um homem tomado por um amor não convidado (há outro tipo?). Não sabe o que fazer com a inviabilidade de seu sentimento. Ou talvez de sua vida. Não quer o sentimento e precisa senti-lo desesperadamente.

Tema comum. Difícil para quem não quer se repetir. Mas Tezza, a exemplo de outros bons escritores, faz do comum o extraordinário. Estabelece uma narrativa rápida, numa falsa oralidade com a fluidez de um texto. Todo o livro se passa em um diálogo entre Paulo e Beatriz. Nele, Tezza (ou Beatriz?) fala do amor não convidado. Do charme das possibilidades irrealizadas. Amor majestoso como o quase gol de Pelé, inolvidável mais que 1000 gols existentes. Sentimentos bonitos como só as coisas nunca acontecidas podem ser.

No diálogo Paulo-Beatriz está a invencível distância da felicidade tão próxima. Como na visão de Michelangelo, os dedos do Criador chegam próximos, mas Adão jamais os tocará.

O amor que irrompe na história dos personagens, mas pela história acaba exilado. História da falação de Paulo que a tudo analise para nada entender. História de Beatriz em seu discurso desarmado e profundamente ensaiado.

Ao colocar em Beatriz (na sua conversa com a amiga Doralice) o poder da narrativa, Tezza talvez (como a maioria de nós) tenta imaginar como as mulheres que amamos nos ouvem. O que elas escutam quando dizemos o que achamos que não dizemos.

Paulo precisa de uma saída para seu labirinto. Beatriz parece saber o caminho. Parece ser o caminho. Talvez não ame Beatriz, ame o mapa que ela parece carregar. Ame as migalhas que ela deixa cair, trilha para fora da floresta ou para se perder complementamente. Um livro sobre os acertos mais significativos da vida, os erros emocionais.