segunda-feira

QUAL É A SUA LAIA?

Eu roubei. Vandalizei patrimônio público. provoquei danos ao patrimônio privado. Fraudei. Receptei produto roubado. Usei arma branca ilegal. Trafiquei. E tudo isto, antes dos 13 anos.

Afanei acessórios do Falcon (art. 155). Pichei as paredes da minha escola (art.163). Furei os pneus de um professor que havia se recusado a dar uma segunda prova para um amigo (depredação). Falsifiquei minha carteira escolar (art. 297) e entreguei trabalhos em nome de outra pessoa (art. 297), em troca de uma mochila que ele roubara do irmão (receptação dolosa, art. 180). Andava com um “Chaco” (art. 19, contravenção). E uma vez comprei de um aluno do colegial, um cigarro de maconha que repassei para outro amigo, em troca de algum lucro (art. 33, na época).

Ufa, Edu. Você quase me assustou com este papo de roubo, tráfico, fraude. Pensei que fosse algo sério. Mas, estas coisas eram comuns... 

Sim, eu não fui exceção. Na minha turma, as fichas dos meus amigos eram parecidas ou até mais extensas do que a minha. Os mais santos invadiam  (pulavam o muro de um terreno particular para jogar futebol) ou ameaçavam professores por cartas anônimas 
(NOTA: carta é um meio de comunicação, onde através de um instrumento, não um aplicativo, chamado de caneta, escreve-se com tinta química em um papel e depois, guardado em um envelope, envia-se por um serviço de logística, conhecido por Correios, para o endereço físico de alguém).

Não importa qual fosse o ato, era necessário transgredir para ser aceito. Os certinhos eram considerados “Crianças”, a maior ofensa que um adolescente pode ouvir. 

Talvez minhas transgressões viessem do conflito entre o que eu era porque achava que devia ser (um CDF, como eram chamados os nerds, primogênito e bom religioso) e o cara que eu queria ser para ser aceito (um corajoso transgressor). 

Talvez. Nunca soube das causas. Não estavam preocupados em achar um bode expiatório pseudo-científico.  Por fatores totalmente alheios à minha vontade e/ou esforço (cor da pele, condição econômica, apoio familiar, amigos, tutores informais, etc.), mesmo quando apanhado no delito (e fui pego algumas vezes), não fui enviado para um presídio infanto-juvenil. No máximo recebi ”prisão-domiciliar”. Sentenças como: 2 dias sem televisão e sem sair do quarto. Ou uma multa: Neste mês, não tem mesada, espertinho. 

Não fui abusado. Não fui tratado com violência. Deram-me o benefício da segunda, terceira, quarta chances. Oportunidades de reparar, de recomeçar. Afinal, aquilo era considerado “normal para a idade”. 

Com o tempo, por obra deste entorno favorável e por aquilo que os cristãos chamam Graça, os descrentes, de Sorte e os economistas de Privilégios (mas, que todos concordam ser imerecido e de difícil explicação) eu e minha turma fomos aprendendo formas de expressão e rebeldia que não implicavam em ferir, nem violar os direitos de outros, e, muito menos ainda, os nossos próprios. 

Eu e minha turma fomos exercendo outras formas de coragem. Assim crescemos e hoje seguimos, boa parte do tempo pelo menos, a lei (não tenho nenhum amigo de adolescência que tenha ido para o PCC, nem  para a política ou CBF).

Mas, outros meninos (pobres e, em sua maioria negros, moradores de áreas estigmatizadas, etc.) que transgridam não são vistos como eu e meus amigos de classe média foram.

De nós diziam: Vocês têm um grande futuro pela frente, têm potencial, são gente de boa índole, etc.
Agora, sobre os outros meninos dizemos: Não têm futuro. Pau que nasce torto, nunca se endireita. Já nasceu bandido! Já vem torto de nascença, filho de bandido já nasce errado. Nem adianta tentar, não tem família! Esta laia tem que morrer, Morreu? Um bandido a menos! Dá porrada para Aprender! etc.

Eu e meus amigos ouvíamos que precisávamos de apoio psicológico, de igreja, de família, de boas amizades, de vergonha na cara, de maturidade ou mesmo de um castigo (uma privação temporária de alguma diversão) etc.
Esses outros meninos ouvem que precisam de presídios ou mesmo de morte por balas pagas pelos nossos impostos. Eles são “casos perdidos”. Se juntos, não são turma, são quadrilha. Não são amigos, são comparsas.

Se não bastasse o que nós, “estranhos”, pensamos e não-fazemos a respeito desses outros meninos  que transgridam. Se não fosse suficiente a política de extermínio oficial (pelas mãos da PM) que silenciosamente apoiamos. Ainda por cima, poucos deses outros meninos têm no seu entorno fatores e/ou pessoas que possam ajuda-los nos conflitos, apoia-los nas dificuldades materiais e/ou não, mostrar-lhes exemplos de que é possível crescer sem se tornar violento, de que existe uma masculinidade positiva, de que a injustiça que eles vivem não será diminuída pela violência, etc, etc.

Alguns escapam. Não porque tenhamos, nós a maioria da sociedade adulta, algum mérito nisto. Em alguns destes casos é por obra de alguns e algumas benditos(as) dissonantes, que acreditam neles. Em outros,que me desculpem descrentes e/ou economistas, é apenas pela Graça mesmo.

Condenar uma criança ou adolescente a não sair do ciclo de transgressão ou desistir de um ser humano que mal atingiu 1/6 de sua vida é o mesmo que negar nossa própria humanidade.

Por isto, digo que conheço bem a “laia” desses outros meninos. Não são outros. São iguais a mim, iguais a maioria de nós. São da mesma laia que eu, a laia dos humanos. 
Já sobre a laia dos que não demonstram misericórdia por eles...


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