quinta-feira

METEORITO



Não me podia a Sorte dar guarida
Por eu não ser dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,

Fiel à palavra dada e à idéia tida.
Tudo mais é com Deus!

 (Fernando Pessoa)
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Noutro dia, acordei Carpe Diem. Nestes dias quando você promete fazer algo diferente. Um ato ímpar que torne seu dia memorável.
É um bom sentimento. Mas, de difícil execução. A rotina nos protege, a natureza adora a repetição.
Vestir a cueca para fora da calça? Ir trabalhar com as pantufas do Mickey da minha filha? Há formas mais originais de se expor ao ridículo. 
Logo no elevador, pensei em agarrar a vizinha. Risco grande. Além do divórcio, o mais provável é que meu gesto impetuoso fosse visto como agressão.  Não poderia mais ser candidato a senador, nem a síndico do prédio.  
Na padaria, pensei em pedir cappuccino, ao invés da mesma média profundamente escura. Não consegui. A única coisa memorável no cappuccino seria o gosto de mistura indecifrável.
Na primeira reunião virtual do dia, comecei com um rock. Mas, como a internet estava ruim (rotina), os demais participantes pensaram que se tratava de microfonia. Em uma resposta que deveria ser padrão, fiz uma proposta radical de mudança de tudo e mais uns 5%. Meu chefe respondeu: Interessante, no próximo ano a gente conversa.
E assim passei o dia, cheio de tentativas malogradas de rompimento.
No final da tarde, depois de mais uma reunião, voltava para casa, derrotado pela mesmice. A caminho do estacionamento, passei em frente a uma lotérica. Fila longa. Mega-Sena acumulada.
Nunca joguei. Sou de uma espécie de pessimismo turrão. Daqueles que acreditam em estatísticas. Análise probabilística simples. Nunca joguei na Mega-Sena pelo mesmo motivo que nunca inseri proteção contra meteoritos na apólice do seguro de meu carro. Afinal, ser atingido por um meteorito é algo que tem a mesma chance de ganhar na Mega-Sena acumulada.
Minha virgindade na Mega-Sena combinada com minha falta de habilidade com a bola e com minha pobreza de samba no pé seriam motivos para cassar minha cidadania brasileira.
Se a inabilidade com o futebol e com o samba não poderiam ser resolvidos, poderia diminuir minha brecha com outra identidade nacional. Pensei na minha promessa Carpe Diem.  Entrei na fila.
E que fila! Daria um estudo antropológico. Um grupo mais heterogêneo que o arco de alianças governo.
Um executivo em seu terno bem cortado. Olhava o I-Phone, talvez conferisse o fechamento da bolsa.
Duas senhoras já há muitos anos com direto o de à fila preferencial, falantes, com caras de saídas do bingo da igreja. Tentavam a sorte em algo maior do que um jogo de panelas.
Um jovem, pelo menos era o que parecia ser por detrás da franja assimétrica. Usava uma calça de uma cor igual às dos lápis que ficam intactos no meu estojo.
Uma mulher, pelos seus 35-40 anos. Aliança de design tradicional no médio esquerdo. A julgar pelos cabelos ainda molhados, o vestido preto levemente amarrotado e pela cara amarrada, talvez buscasse a prometida sorte no jogo para os que têm azar no amor. 
Uma moça envelhecida precocemente, quem sabe pela vida dura que seus olhos carregavam.
Um rapaz, em uniforme de chef de fast-food, olhava o celular com impaciência. Acho que deixara algo no fogo.
E assim a fila seguia, com tipos de todos os tipos. O IBOPE deveria fazer pesquisa eleitoral em fila de Mega-Sena. Melhor amostra impossível. Dela só ficam de fora os que acreditam em meteoritos. E estes votam “nulo” porque sabem que tudo vai dar errado.
Não sou do tipo de me sentir intimo. Chamo garçom de senhor, bato na porta do quarto de meus filhos, desde que eles nem tinham altura para alcançar a maçaneta. Mas, uma fila de Mega-Sena gera um tipo de intimidade instantânea. Em minutos, estávamos todos conversando.
O executivo com um olho no I-Phone e outro no vestido preto: 
- Estimam em mais de 100 milhões o prêmio.
A senhora do bingo sábia emenda:
- Eu nem quero ganhar sozinha. Muito dinheiro atrapalha.
- Por mim, qualquer coisa já mudava minha vida, desde que desse para sair do aluguel, ajudar minha mãe, colocar meus filhos na melhor escola do mundo. Declarou altruísta a moça do cansaço nos olhos.
O chef de fast-food:
- A primeira coisa que eu faria seria jogar fora todos os meus relógios, principalmente o meu despertador.
O rapaz em sua calça caneta-marca-texto tirou a franja do cabelo e emendou:
- E eu atirava o meu na cabeça do meu chefe.
- Jesus vai me abençoar e vou ganhar. Comprar um barco enorme e sumir. Afirmou com fé, a mulher dos cabelos molhados.
- E você? Fez a pergunta a mulher dos cabelos molhados.
- Eu? Não tenho a mínima ideia.
- Mentira. Todo mundo tem um plano, sentenciou a morena.
Pensei em dizer que compraria uma passagem no barco dela, mas a julgar pela cara brava, poderia apanhar. E se fosse para arriscar, tentado minhas chances com a vizinha no elevador, logo de manhã.
Ninguém acreditava que não tivesse um sonho para aquela fila.
Viajar? Pago para ficar. Já viajei por umas 3 vidas.
Parar de trabalhar? Ficaria entediado em 15 dias.
Telefonar para uma meia-dúzia de pessoas e xingar até a 6ª encarnação delas? Mesmo milionário, ligaria 5 minutos depois, para pedir desculpas. Era capaz de ainda dividir o prêmio com eles, por remorso dos meus impropérios.


Poderia morar em um apartamento 3Xs maior? Dirigir um automóvel cujo IPVA custasse o valor do meu atual carro? Comprar vinhos de 1000 euros a garrafa? Almoçar todo dia no Fasano? Parar de trabalhar e ficar só escrevendo livros? Poderia tudo isto. Mas, penso na solidão de um apartamento de 500mts, na inutilidade de um carro caro. Quase sinto tédio que seria comer trufas 3 vezes por semana, nos 1000 tipos vinhos de R$50,00 que ainda quero experimentar. E constato que, mesmo se escrevesse mais livros do que Paulo Coelho, todos teriam um só assunto e ninguém os leria.
Adoraria ter muito dinheiro e nunca mais me preocupar com isto, claro. Seria bom poder solucionar qualquer problema que o dinheiro resolve.

Mas, os desejos irrealizados (há outro tipo?) que tenho até poderiam ser impulsionados, mas não se resolveriam com os milhões da Mega-Sena. Eles estão além. não do saldo bancário, mas fora dos limites de minha coragem ou para além da capacidade do meu estoque genético.
Ali na fila, concluí que não tinha planos consistentes para meus futuros 100 milhões. Talvez nunca tenha jogado por essa minha pobreza de imaginação.  

As pessoas não jogam para ganhar, apostam pelo direito de sonhar o que fazer com o prêmio. Privilégio só de quem tem um bilhete.  Joga-se por um plano para a sorte. Por uma solução, um sonho, um alívio que o dinheiro trará. Acreditam, por mais que saibam que é mais fácil ser atingido por um meteorito.
Percebi que não tinha direito de estar naquela fila. Desejei sorte a todos meus recém conhecidos velhos amigos. Fui.
Quando eu descobrir a resposta, volto para a fila.
100 milhões são suficientes para construir um escudo à prova de meteoritos?


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