segunda-feira

CARO COLEGA ASSASSINO

No dia 25 de Janeiro, Rômulo Oliveira da Silva, de 37 anos, foi levado para a UPA de Manguinhos (Zona Norte do Rio de Janeiro), logo após ter sido baleado, por volta de 18 horas, na localidade conhecida como Coreia, mas não resistiu ao ferimento. O tiro atingiu o peito de Rômulo. Ele trabalhava como porteiro da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Não havia troca de tiros na hora. Todas as pessoas que viram disseram que o tiro veio da Cidade da Polícia (Centro Administrativo-Operacional da Polícia Civil)  

(Fontes: Extra, O Dia, G1)



Caro Colega-Assassino, 

Perdão por chama-lo por um adjetivo. Sei que você não se resume a um ato. Assim, quando me chamam de gago ou covarde não me definirem. Mas, admito que nenhum desses adjetivos me é indevido. 

Então, queria falar do fundo do meu coração de covarde para o fundo do seu coração de um assassino. 
Tomo a liberdade de escrever porque temos muito em comum. 

Somos Colegas. Temos a humanidade em comum, essa espécie que convive com o pretender-se tudo, mas se saber nada mais do que poeira cósmica, encapsulados em uma máquina orgânica, programada para parar, na melhor das hipóteses em algumas décadas. 

Temos em comum o fato de sermos anônimos. Eu porque nunca fiz nada digno de atenção. Você porque fez algo digno de punição. 

Como sei que você é funcionário público, sei que temos em comum sermos brasileiros. Sabemos, como nenhum norueguês o que é viver entre o embate da ideia esperançosa de futuro, afinal aprendemos que temos tudo par dar certo, e a realidade enervante do presente, porque que “só no Brasil mesmo”. 

E nós dois temos em comum mais ainda: trabalhamos para o bem maior e público. Eu, como em uma organização humanitária. Você, como na Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Temos motivos para nos orgulhar de nossas corporações. Salvamos vidas, melhoramos o mundo. Também compartilhamos dos limites e contradições de nossas instituições, e certamente temos uma revolta de estimação pelo peso de tantas vezes enxugar gelo. 

Mas não somos só eu você que compartilhamos muita coisa. 

Rômulo de Oliveira da Silva, que até outro dia era um anônimo como nós, também compartilhava conosco o trabalhar para o bem da sociedade. Há um ano, dava seu pedaço em dos maiores centros de saúde pública do mundo, a FIOCRUZ, cujas ações, calculam, já salvou mais de uma dezena de milhões de vidas. Lá ele ajudava no Centro de Documentação, área essencial para ajudar a enfrentar os desafios futuros de saúde. 

Você e Rômulo trabalhavam na mesma área e para o mesmo patrão que você. Eram ainda mais próximos do que nós dois.

Rômulo estava mais feliz com o trabalho, do que eu você, Colega Assassino. Era o melhor emprego dele, em seus 15 anos de “carteira assinada”. Quando tinha 19 anos, vacilou e passou 2 anos preso por pote ilegal de uma arma quebrada e sem munição. Rômulo, como eu e você, tinha pisado. Mas, diferentemente de eu e você, pagou por isto muito mais do que o devido. 

Não sei sobre sua família, Colega Assassino. Mas, sei que você tem uma. Rômulo também. Era irmão de Lidiane e filho de Seu Luís, mecânico aposentado. A quem tinha dado um neto, de 4 anos, Felipe, o mesmo nome do meu filho. Rômulo cuidava de Felipe, durante o dia, quando sua esposa hortelã, Fabiane, garantia o crescimento saudável de couves e alfaces, que suprem algumas creches em Manguinhos.   

Rômulo, como eu e você, preocupava-se com a família. Sua esposa tinha sido assaltada 3 vezes. Ele viu a van onde estava ser baleada e tinha medo da violência. Assim, como eu e você. Comprou uma moto, assim que o salário, baixo e injusto como o seu, começou a cair. Foi uma oportunidade. Mas, a possante vermelha precisava de freios novos. E Pereirinha, dono da Gileade Motos, que divide o trabalho voluntário de Obreiro da Igreja Causa de Deus, com a fama de melhor mecânico de motos na área da Coreia, faz um serviço em conta e na pressão. 

Rômulo deixou Felipe com Fabiane e foi passar na Gileade Motos, antes de pegar no serviço. 

Neste momento, o Destino, a Providência ou a Fatalidade fez com que nós 3, com tantas coisas em comum, estivéssemos todos em um mesmo raio de ação. Eu, terminava um seminário internacional na Escola de Saúde Pública, na área Fio Cruz, para onde Rômulo se dirigiria, depois do Obreiro-Mecânico Pereirinha consertar seu freio. E, você, treinava tiros no alto da torre da Cidade da Polícia. 

Meu Caro Assassino, nós 3 não nos encontramos. Mas, você podia nos ver. Eu e Rômulo estávamos ao alcance da mira de seu fuzil. Naquela mirada ovalada e graduada, Rômulo não era um ser humano, não era um pai, nem um filho, nem um funcionário público, igual você. No filtro de sua mira, Rômulo era só um alvo. 

E você, por motivos que sejam, decidiu que não era mais um policial. Ao puxar o gatilho, você se rendeu aos valores dos criminosos dos quais jurou proteger a sociedade. Ao se autoproclamar investigador juiz e carrasco, em um processo sumário de segundos, confessou ser um bandido. E, como tal, determinou que tinha direito de terminar a vida de Rômulo, de fazer de Felipe um órfão, de Fabiane uma viúva de Seu Luís algo que, de tão antinatural, nem nome no dicionário tem, um pai com um filho morto. 

Segundo o manual do seu fuzil, pago por Rômulo, eu também estaria ao alcance de sua mira. Mas, eu sou branco (para os padrões brasileiros) e estava em uma Escola de Pós-Graduação, não na Comunidade da Coréia. Eu estava fora do campo de visão de sua miopia. Eu faço parte daquele grupo que os seus chefes dizem ser “gente de bem”, o grupo cujo discurso hipócrita de proteção justifica assassinatos de milhares de rômulos e seus vizinhos.

Rômulo, na mira de seu fuzil, fez você, Colega Assassino, não perceber o que tinha de comum com ele. Com seu ato, você não tirou a humanidade de Rômulo. Nada mais humano do que a mortalidade. Seu tiro foi um suicídio de sua própria humanidade. Ao puxar o gatilho, você aceitou ser somente uma peça ilegal de uma máquina descartável  em uma guerra que interessa ao crime, beneficia agentes públicos manipuladores do medo e sustenta a indústria da falsa segurança.

Mas, Colega Assassino, eu não estou limpo. Além de Covarde, pode me chamar de Incompetente, porque eu, de minha posição privilegiada fora do seu campo de tiro, não consigo fazer nada para mudar esta situação. Nenhuma ação que reduza a conversão de agentes da lei em bandidos pagos pelo erário. Pelo contrário, quanto mais falo sobre isto, mais gente, outros colegas meus, querem que ainda mais colegas seus se convertam ao crime e que mais rômulos entrem na mira dos fuzis estatais.



Assim, sou destinatário e remetente desta carta, eu e a Posta Restante do Brasil 2019.

Colega Assassino, você não será punido. Eu, você e Rômulo também tínhamos em comum não ter a ingenuidade de achar que haja justiça no mundo. Não há. Seu Luís também sabe. No enterro do filho, falou sobre você: “Ninguém vai ser punido. Mas, tenho certeza que o responsável pelo tiro está pensando na tragédia que causou, ele destruiu uma família. Deixou uma criança órfã”. 

Mesmo na dor de enterrar um filho, Seu Luís ainda depositou alguma esperança em você, na sua capacidade de refletir e sentir. Ao enterrar o filho, Seu Luís desejou a ressurreição de sua humanidade. 

Rômulo não voltará a Fio Cruz, não poderá mais cuidar de Felipe, nem ajudar Seu Luís a consertar o telhado. Fora da memória de sua família e amigos, Rômulo será esquecido. Assim, como eu e você também seremos, um dia,

Mas, Colega Assassino, enquanto este dia não chega, você ainda pode não decepcionar Seu Luís e viver como ser humano. 

Atenciosamente 

Gago Covarde

Rômulo em sua moto

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro gago-covarde. Aqui escreve um cabeça-omisso que só lê e não faz nada. Vc pelo menos expressou sua frustada e indignação em um texto que eu espero que muitos cabeça-omissos possam compartilhar e assim quem sabe mudar algo