Era o dia de voltar para casa. O calor refletido no turquesa da baia da Abdijan dizia bom dia para todos os hospedes do hotel. Até para os que não queriam. A cortina era fraca demais para um sol que contradizia o relógio, onde ainda aparecia 05h50min. Abdijan dispensa despertadores.
Avenidas largas sonhos de governos megalomaníacos e suas palmeiras, combinavam com rua de um passado colonial recente. Transplante europeu deslocado. A herança do colonizador, colonizada. Gente colorida e suas conversas sempre empolgadas. Sorrisos e protestos evidentes. Tudo muito evidente como convém. Os tambores sincronizam o coração. A piada e o sorriso sempre presentes, mesmo ou principalmente, na tragédia. O oceano não separa os fortes traços de culturas africanas que vieram da Guiné, Mina e de toda a região oeste africana. Traços que são, assumidamente ou não, o centro do que chamamos de cultura brasileira. Para um brasileiro, Abdijan era como a casa de um familiar.
Era meu último dia de uma visita de alguns dias, por estradas muito mais bem cuidadas que as de grande parte do interior brasileiro. Pequeno, pacífico e com uma distribuição fundiária quase em padrões europeus, a Costa do Marfim desafiara meu pessimismo em relação às possibilidades africanas. Vivia um período de democratização, depois de mais de uma década de um único presidente. Se as Democracias talvez se pareçam, as ditaduras são sempre singulares. Esta tinha um parlamento, um primeiro-ministro eleitos, mas um só partido. Dispensava brutais forças de Inteligência e garantia sustentação por uma rede de escolas públicas que chegava a toda comunidade e era o ponto tanto de controle como de distribuição de benesses sociais. Um líder carismático, libertador e herói nacional. Alias eleito facilmente presidente, nas primeiras eleições pluripartidárias e fiscalizadas.
As escolas surgidas para controlar haviam se transformado em núcleos comunitários. Cada comunidade, por menor que fosse, tinha sua organização. Jovens, oriundos da primeira geração alfabetizada, chefiavam conselhos comunitários. Era estimulada a crítica a tudo, desde que não ao presidente. Esta mistura de estabilidade de um regime de partido único, em um país que já era multipartidário, a liberdade empreendedora, um povo aberto a estrangeiros e um Estado que não insistia em regular os detalhes da vida, atraiu investimentos de toda a parte. Também fizeram da Costa do Marfim um ponto de encontro e diálogo diplomático para países vizinhos então e, em parte, até hoje em crise.
Esse ambiente, a riqueza mineral (presente em quase toda a região, uma das províncias minerais mais ricas do mundo), boa infra-estrutura, taxas de escolarização superiores à média africana, fizeram da Costa do Marfim um país que, naquele ano de 1992, completava 20 anos de melhoria ininterrupta no seu Índice de Desenvolvimento Humano. A continuar a tendência, em mais 2 décadas, seria um país de desenvolvimento médio e o 3º IDH da África. Esta foi a afirmação de um painel de economistas, chamados pelo Banco Mundial e pelo Banco Africano de Desenvolvimento. Eu ouvia com atenção ao seminário e pensava presenciar a fórmula para sair da pobreza.
As Organizações humanitárias também eram otimistas. Reduziram ou fecharam seus programas de assistência no país. Abdijan, por sua paz e infra-estrutura, era então a sede administrativa sub-regional de muitos organismos do sistema internacional. Mas, política não segue tendência estatística. E não há conquista que não possa ser perdida. Desde a década de 90 a Costa do Marfim alternou crises políticas com períodos de normalidade, cada vez mais raros. Conflitos institucionais evoluíram para guerrilhas, Golpes de Estado e guerras civis. Os investimentos se foram pouco a pouco. As agências humanitárias nunca retornaram. Restaram apenas os investidores de alto risco e baixa responsabilidade que trocam diamantes por armas ou até cocaína.
Hoje a Costa do Marfim vive talvez os últimos dias da atual guerra civil. Seja qual for o desfecho, outras guerras provavelmente seguirão. A infra-estrutura do país acabou. Da rede de escolas públicas, restam ruínas. Estima-se que as taxas de analfabetismo estão entre as cinco piores do continente africano. Quase 200.000 crianças (abaixo de 16 anos) estão arregimentadas nas forças bélicas. Um levantamento do UNICEF contou 18000 crianças com menos de 12 anos pelas ruas das 3 principais cidades do país. Dois terços das crianças marfinesas sofrem de desnutrição. Todo o ganho social das décadas de 70 e 80 se foi. Mesmo que a paz chegue ao país (e, em curto prazo, não há indícios que virá), seriam necessárias décadas e bilhões para voltar ao ponto de 1990. Até lá, toda uma geração de crianças marfinesas terá morrido ou sobrevivido em condições de fome, violência e abandono.
Costa do Marfim e tantos outros exemplos só corroboram o que se sabe e freqüentemente se tenta esquecer. Há desafios econômicos, sociais, educacionais, mas o Desenvolvimento é uma tarefa primeiramente Política (com o P mais maiúsculo que se pode ter) e sem política não pode avançar.