FOTO: LEONEL ALBUQUERQUE
Meu primo, Leonel Albuquerque, fotógrafo aéreo, clicou a Brasília de um ângulo muito diferente. Trata-se da vista da PCH no Paranoá.
Não há Palácio do Planalto, Congresso, STF, passeatas, carros oficiais, nem corpos estendidos no Gama. Há um lago ao invés de uma esplanada, um declive no lugar do planalto, uma singela usina ecologicamente correta ocultando monstros arquitetônicos perdulários.
A bela foto de Leonel
lembrou-me de uma máxima de meu pai: cuidado com as conclusões muito rigid3as porque há sempre
algum ângulo que não vemos.
Lembrou-me também uma
reunião, em 1999. Acompanhando o Relator Especial da ONU para Ruanda, conheci
um coronel, da etnia Hutu. Tinha estudos em Paris, Mestrado em Princeton.
Começou a reunião perguntando em que idioma queríamos falar. Era fluente em 5
ou 6, não me lembro mais. Semblante tranquilo, unhas manicuradas, gravata
elegante, não mudavam o fato de que, alguns anos antes, ele tinha sido líder do
pelotão mais profícuo no extermínio de civis e que pessoalmente incendiou uma
escola primária Tutsi, com mais de 100 alunos dentro. Feito que ele propagava
orgulhoso.
Lembro-me do meu nojo daquela pessoa. Acho que não disfarcei, porque meu professor (o tal relator da ONU), já no hotel me disse: "deu
vontade de colocá-lo em um mastro e queimá-lo lentamente?" Eu somente ri,
como quem consente. Então ele me disse algo como: "Eu também tenho desejos
impublicáveis de justiciamento. Mas, aprendi que isto só confirmaria que ele
tem razão, de que a violência é caminho para a justiça. Ele não considera os
Tutsis como gente. Só vê UMUNYOROGOTO. O que? Ele então me contou uma
história.
Na noite de 6 de abril
de 1994, um avião que transportava os presidentes de Ruanda e do Burundi,
ambos hutus, foi derrubado. Extremistas hutus culparam os Tutsis e
imediatamente começaram uma campanha bem organizada de assassinato. Cerca de
100 dias depois, 800.000 Tutsis (e Hutus opositores ou que defendiam
os Tutsis) foram mortos Gente morta por balas, facões,
queimada, a pancadas.
Vizinhos mataram
vizinhos, maridos as suas mulheres Tutsis. Gente, outrora razoável,
respeitáveis membros de suas comunidades, frequentadores assíduos de igrejas,
amigáveis colegas de trabalho, manicurados coronéis com seus mestrados
convertidos em assassinos. Para os perpetradores, não era assassinato, era
extermínio de larvas.
A
violência das palavras é a infância de todo massacre, segundo um historiador inglês. A
violência em Ruanda começou com xingamento e terminou em bala.
A fotografia me lembrou desta história e de que o que sei, sinto, vejo, quando muito, é apenas parte. É difícil e necessário calar
o aiatolá, o inquisidor que grita em mim por uma justiça orientada por meu parcial e
oblíquo ângulo.
O que mais vejo pelas
redes sociais é a violência da palavra. O juízo e o escrutínio do erro do outro.
O discurso de "santos" vitimizados pelas injustiças e corrupções alheias. A
violência justificada pelo meu ângulo, da minha classe social, do meu
time, do meu partido, da minha cidade, da minha cor de pele, do meu bairro, das
minhas crenças.
Aí,
quando tenho vontade ou de CURTIR ou de bloquear o autor destes discursos violentos, lembro-me do meu professor, do coronel genocida. ELembro concluo: o destino de quem vê o outro
como "UMUNYOROGOTO" é terminar, ele mesmo, um verme.