sábado

R.I.P.

“Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas”.
                                     Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

No meu porta-lápis só residem canetas que, órfãs, vestem infielmente tampas desencontradas ou desfrutam da liberdade solitária de borrar o mundo. O descompasso, os espaço vagos, as manchas, tudo denuncia a ausência das sumidas tampinhas de caneta.
Dizem que seu desaparecimento é motivo de estudos em Harvard, pesquisas da NASA, investigações da INTERPOL, debates de concílios religiosos. Ninguém sabe ao certo a resposta para esse mistério, que juntamente com de que como com 5 vogais é possível compor milhares de músicas de axé, o tom da tintura do bigode do Sarney e o dilema se: “Tostines vendem mais porque esta sempre fresquinho ou está sempre fresquinho porque vendem mais”, ocupam o topo na lista dos temas complexos não solucionados da existência. O Teorema de Fermat e o Blossom de Higs, mais singelos, já foram desvendados.

Cada um tem sua resposta para as tampinhas escafedidas. Suplicy lembra que em países com renda mínima não somem tampinhas. O pastor fundamentalista diz que as tampinhas, por conta de sua cor, foram amaldiçoadas, baleadas e mortas em um acidente aéreo. Não necessariamente nesta ordem. Jair Bolsonaro crê em uma articulação do movimento gay-comunista-ateu com os inventores do Crocs, criado para abater a masculinidade, com apoio do PT. A VEJA concorda. O PSTU tem certeza de que é o capitalismo internacional aliado ao latifúndio burguês judaico-cristão-petista. A Veja concorda. Os conspiradores apontam para abdução das tampinhas por ETs do PT de Júpiter. A Veja também concorda.  A PF investiga uma quadrilha internacional de tráfico de tampinhas. Gloria Perez promete colocar o tema na próxima novela. A VEJA também concorda e denuncia que um vizinho da prima de um conhecido do português da padaria da rua do Lula é suspeito. Lula afirma que nunca antes na história deste país, tantas tampinhas foram salvas do sumiço e que foi a herança maldita do governo FHC, com suas privatizações neoliberais que as expulsaram do meu porta-lápis. . A Carta Capital concorda. O presidente do STF promete condenar Lula, FHC, Bolsonaro, o português da padaria, os ETs de Júpiter e quem usa Crocs, por domínio do fato, conluio, formação de quadrilha e por postar foto de comida no Instagram e frases falsas de Clarice Lispector no facebook.

De certo, só a ausência delas. Só sei da desarmonia de meu porta-lápis de canetas.  

Diante da desolação do desencontro de meu porta-lápis, a única resposta que me dá algum consolo é de índole religiosa: Haveria um lugar especial verde (grená e branco, na minha versão tricolor) para aonde vão nossas sumidas tampinhas.

Lá também devem descansar as facas de serra, as providências urgentes, as investigações rigorosas, as pilhas recarregáveis, os pares, agora ímpares, de meias brancas. Lá as tampinhas fazem companhia para as canetinhas azuis dos jogos de 24 cores. As beges, as marrons e outros tons de grande inutilidade, tristes e fieis como todas as irrelevâncias, nunca abandonam o porta-lápis. Escoltam minhas canetas órfãs.

Se há este lugar das coisas perdidas inexplicavelmente, lá estará o sorriso que me encantou na adolescência, o perfume acanelado da primeira namorada, a ansiedade de olhar a fresta, a confiança de que com aquele blusão sem mangas, o mundo seria meu, o sonho de ser astronauta-centroavante-pediatra-Nobel da Paz, tudo ao mesmo tempo.

Lá estará a certeza de que o tempo nunca passaria, a pressa pelo próximo aniversário, o arrepio antecipado antes de abrir o chuveiro, o som do pátio na hora do recreio, a ansiedade pelo boletim, o cheiro de passado da biblioteca, o medo da professora, o orgulho da casquinha e o prazer o prazer masoquista do arranhão. Lá está a certeza de olhar nos olhos do atacante e dizer: Vou pegar seu pênalti. “Perdeu Playboy!”

Lá estão abrigados todos os cachos dos cabelos, expulsos pela horda bárbara do alisamento, as carteirinhas de passe, talvez jogadas sobre o parquet gasto da sala, iluminado pela janela que dava para a rua, que dava de frente para toda a liberdade do mundo. Lá se esconde a inveja que eu tinha dos que passavam pelas sombras das castanheiras da rua, livres da escola, da carteira, do parquet.

Lá, em algum canto esquecido desse lugar de olvidos, está o tato do cabelo dela, penteados pelos meus dedos, o hálito de um vinho compartilhado no beijo, o eriço do toque clandestino, a antecipação do encontro, a vergonha dos subterfúgios mal disfarçados, a sensação de que a onda da vida ainda não alcançou a praia.

Neste refúgio final, repousam a voz de meu pai e de todos os que foram para longe demais para serem tocados, mas que em sua ausência seguem demasiado presentes para nos tocarem.

Placidamente fazem companhias às tampinhas de BIC e outras minoritárias, às ênfases dos argumentos extintos, às vitórias vencidas, aos arrependimentos pelas imprudências não cometidas, à vergonha pelos arroubos abortados, à vontade inútil de reverter o muito dito e de dizer o emudecido. Nesse lugar, por fim repousam os inquietos amores enevoados.

Lá jaz teimosamente tudo o que, pela nossa profunda incapacidade de reter o efêmero da vida, o esquecimento esmaece, mas não consegue apagar.



Que as tampinhas e tudo o mais descansem em paz.