quarta-feira

FELIZ NATAL, O %$&#@!




Nesta época do ano, basta eu ouvir as musiquinhas de natal estilo Broadway-Disney para sentir despertar em mim os mais profundos sentimentos. Sentimentos assassinos.
Não sei você, mas eu chego ao final do ano só o bagaço. O “pó da bactéria”, como diz uma amiga. Quando surge a primeira gôndola de panetone no supermercado, já me sinto ameaçado. O primeiro sorteio de amigo secreto vaticina o fim. Dá até taquicardia ao ouvir o ecoar do mantra “hoje é um novo dia, de um novo tempo que começou...”. Desde minha infância, os anjos do apocalipse, quer dizer, do fim de ano, Roberto Carlos e Papai-Noel, como dupla sertaneja, sempre vêm juntos. Com as mesmas músicas. Com as mesmas roupas, sempre na mesma cor. Quase tudo na mesma, porque hoje o Papai-Noel parece mais novo do que seu colega.
Todos os sinais dessa época conspiram para me dizer: acabou e eu não dei conta da listinha de 31 de Dezembro passado. Não deu conta nem das contas do Réveillon passado. Os quilos, que nem teve tempo de perder, logo ganharão novos coleguinhas. Novas listas inconclusas de final de ano se aproximam.
Quem vive em São Paulo ainda tem direito a um presente coletivo adicional. O trânsito, que todo mundo passa 11 meses dizendo que não pode ficar pior, piora em Dezembro. Para fugir, fui almoçar em um restaurante judaico. Ilusão. Diante da enorme fila de espera, indaguei “Seu Baron”, o dono. Com seu sotaque meio Rio, meio Budapeste, explicou: “é Natal, main filho, no ter jeito”. Natal em São Paulo congestiona até mesquita. A prefeitura estuda fazer rodízio de papai-noel, pelo final da placa do trenó, que deve estar com inspeção veicular em dia:-)

Tudo parece cheio e falso. Árvores com menos vida do que fósseis. Neves acrílicas que sobreviverão a qualquer aquecimento global. Luzes de um verde mais artificial do que o da camisa (e o futebol:-) do Palmeiras. Bolas mil, que desconfio brilham de tão radioativas. Nesta época tenho a impressão de que o país que mais celebra o natal é a China. O Natal, um dia foi Made in Palestina, hoje com certeza é Made in China. Natal Pilata, né?
Neste espírito, semana passada, estava encarcerado neste trânsito infernal, digo, natalino de Sampa. Lia num jornal, daqueles gratuitos, que milhares de crianças foram abandonadas no deserto do Saara porque suas mães tiveram que emigrar à força, expulsas pela indústria de petróleo e pela guerra. Voltei para o celular e comecei a digitar um email, que reduziria para apenas uns 999 os pendentes. No texto, tentava convencer meu chefe de que não dá para fazer chover no Saara, pelo menos não com esse orçamento. Mas, minha cabeça estava na listinha não cumprida de presentes não comprados, nos problemas não superados, nas ausências.

Naquele momento, uma senhora com uma pele mostrava que parecia contar uma história, passava por entre os carros encalhados. Anunciava água, refrigerantes. Vendia uma pausa. Abri o vidro e supliquei por uma salvadora latinha de Coca-Zero. Foi quando vi, na calçada em frente a uma loja, um Papai-Noel de sorriso tão autêntico quanto sua barba de algodão. Contato visual feito. Talvez por medo do que visse nos meus olhos, ele me acenou e disse: “Feliz Natal”. Vi o congestionamento ao redor, pensei na chuva no Saara, no orçamento, nos órfãos do petróleo, no terninho azul do Roberto Carlos, nas listinhas, etc. Só consegui imaginar uma resposta: “Feliz Natal, o &*%$#@!”. Paro a frase por aqui, pode ter criança lendo este texto :-)

Já que a boca nunca diria este desaforo (medo de minha avó se levantar da tumba e lavar minha boca com sabão:), a cara deve ter se encarregado da mensagem. Porque, quando voltei ao planeta Terra, vi a senhora, parada com a latinha na mão, com uma expressão de que não entendeu nada. Ou entendeu tudo:
-“3 Reais e um sorriso.

Contrariando o que meu pai dizia, paguei sem regatear. Recebi uma lata de coca-zero e um “Feliz Natal” de troco. Mais um. Mas, ao invés da resposta atravessada, senti a vontade, talvez quase a obrigação de dizer um envergonhado e surpreendentemente honesto:
- “Feliz Natal para você também”.

O trânsito seguiu moroso. Tempo para pensar. No meio de tanto “Feliz Natal” pilata, como a barba do Papai-Noel, o que meu inesperadamente honesto “Feliz Natal” desejava àquela senhora? Na minha mão, a latinha de coca foi meu oráculo inusitado. Zero. O Natal Zero, o original. O Natal Paradigma. O Natal que aconteceu sem que ninguém se desse conta de que vivia um Natal feliz. Qual é a felicidade do Natal Zero?

Os protagonistas do Natal Zero são viajantes involuntários. Submetidos aos caprichos de Herodes, o rei fantoche. O líder é um Rei falso, Rei Pilata. Submisso diante do império Romano. Exige submissão, coloca em fila, conta e finge controlar sua pequena população de quase-súditos. Só ataca quem é fraco. Rei, cuja única campanha militar foi contra recém-nascidos.

José e Maria submetidos injustamente. Indefesos. Época de frio. Gravidez avançada. Sem hotel adequado. Nem SUS. Longe de casa. Mal acomodados. Sozinhos (nota: para um judeu qualquer grupo com menos de 12 é solidão:-). Não há menção a nenhum banquete. Os presentes foram poucos e chegaram atrasados. Pelos parâmetros de hoje, o Natal Zero foi uma pobreza. E foi feliz.


Feliz porque a criança irrompia no meio do império e seus títeres. Feliz porque o Menino vinha para inverter os parâmetros. Para anunciar uma nova ordem, onde o maior é pequeno. O rico é o que não possui nada. O louco é o verdadeiro sábio. O sujo é mais limpo. E os que se proclamam limpos são podres por dentro. O que perde, acha. O que busca a paz é o verdadeiro corajoso. O estábulo é o centro e o palácio a periferia da felicidade. Ordem onde Deus se manifestava longe do templo, revelava a pastores e magos o que os sacerdotes não viam.

Minha irritação não é com a festa, é com o natal pilata. O natal anti-Zero. O natal do acúmulo, do consumo e não de doação. Natal da Economia que esmaga em nome da racionalidade do lucro; do poder que, até hoje, persegue e mata crianças; que inventa, acentua e reafirma desigualdades. Um natal que sacraliza o consumo que consome pessoas e ao próprio planeta. Um natal que endeusa o palácio, o poder e toda agenda que o Natal Zero veio para esculhambar.

Olho o presépio aqui de casa, feito por uma comunidade indígena peruana, onde o Menino Jesus tem olhinhos puxados e ao invés de uma vaca, uma lhama posa ao lado dele. A cena reflete a simplicidade. Nao há adornos. Nada supérfluo. Vejo a felicidade do Natal Zero. A felicidade que , como um menino no meio do estábulo, irrompe e interrompe os “impérios romanos ou não”, os “herodes” com seus palácios e polícias, os problemas do último e-mail, a agenda por cumprir.

Meu “Feliz Natal” é um desejo de que possamos nutrir a Esperança que reorganiza o horizonte, o perdão que reedita as relações. Um tempo de reforçar os laços que libertam, o brilho que acolhe, onde a presença sobrepõe presentes. Um Natal da liberdade de quem segue a estrela e se prostra diante do Menino.

Meu Desejo é um Natal com menos. Menos tudo o que não importa. 365 dias de Feliz Natal Zero para você!

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Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes

PS- Esta mensagem não foi patrocinada pela Coca-Cola Zero kkk”.