domingo

PREVISÃO

Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
(...)
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

(Affonso Romano de Sant’ Anna)


- As imagens do satélite mostram uma massa de ar polar, vinda da Argentina, que mudou o tempo hoje no Sul do país. Amanhã é a vez de São Paulo. Já no meio da tarde, o frio alcança a maior cidade do país.

Miltinho, Cátia, Maria das Graças e Getúlio assistem, rendidos ao sofá. Cada qual em seu lugar de direito ou de destino. Todos orbitam a luz hipnotizante da TV. As roupas com sobriedade de um mapa da moça do tempo não escondem seu visual bem tratado. Em tom professoral, decifra as machas coloridas da tela.

- Deve ser legal viajar de Satélite. Quebra o silêncio Miltinho.
- A Lua é um satélite, você podia viajar pra lá. Sugere Cátia.
- Messi é da Argentina, mas o Maradona era melhor. Divaga Getúlio.
-  Shhhhh!!!! Reivindica Maria das Graças.

Todos obedecem. As cores dançam na tela. A TV retoma o monopólio dos ruídos. Cessada as distrações, os habitantes da sala voltam para seus colóquios interiores.

Frio?
Miltinho se anima. Tem feito um calor estraga-prazeres. Finalmente, poderá estrear o casaco novo. A menina da contabilidade deu mole. Ela não vai resistir ao casaco. Pensa nele no casaco. Gosta da imagem. Fica mais forte. Parece americano. Sua mãe lhe deu o casaco. Cátia implica com ele. Diz que é protegido. Ela é chata. O casaco é maneiro. Se a menina da contabilidade quiser, eles podem sair sábado. Precisa de dinheiro. Vai pedir para a mãe. Cátia diz que ele é protegido. Melhor ela não saber. Dirá para mãe que precisa de um livro para a escola. Fica feliz com a imagem dele no casaco novo. Americano. Pensa na bunda da menina da contabilidade. Precisa perguntar para o Ari o nome dela. Precisa de dinheiro para sábado.

Frio?
Cátia queria ser Kátia. Mas, o pai não gosta de K. Ela acha que o pai nem sabe para que serve um K. Ela sim, um K faz diferença. Toda diferença. Kátias com K são muito mais legais. Vai fazer frio. Ela vai usar meias por baixo do vestido. Não. Ela vai usar calça. Vestido engorda. Não importa o que a balança diga. Ela sabe que está gorda. Ela precisa de uma calça nova. Mais justa. Essa calça dela a deixa baixinha. Precisa de uma calça de inverno, que alongue as pernas. Tem que gastar menos de celular. Parar de ligar para aquele traste. Ele não merece uma mulher alongada. Ele não merece nem uma Cátia com C. Precisa fazer umas contas. Não é folgada como Miltinho. Não quer favor da mãe. Não se conforma com um homem de 20 anos ainda ser “Miltinho”. Ele sempre será “inho”. E ela Cátia, com C. Desanima e pensa no chocolate guardado no seu armário. Escondido do esfomeado do Miltinho. Frio dá vontade de comer chocolate. Não! Nada de chocolate. Ela tem que caber na calça 38 daquela vitrine do shopping. Com a calça 38, ela vai ficar gostosa, alongada como se fosse Kátia com “K”.

Frio?
Maria das Graças tenta se lembrar onde está seu casaco. Tem bolinhas, mas gosta dele. Há muito tempo ele foi azul. No tempo quando ela era Gracinha. Hoje, é Dona Maria. Quando muito, Maria das Graças. Não tem graça. Não tem trocadilho. Lembra do casaco, quando era azul. Da quermesse na Igreja da Vila Ré. Lembra de Paulinho. Lembra do calafrio do beijo clandestino, atrás da quadra. Lembra das mãos escavadoras de Paulinho a explorar todo o seu corpo. Queria saber por onde anda Paulinho e suas mãos decididas. Sente um calafrio. Lembra que era Gracinha. Lembra do azul. Olha para Getúlio e o calafrio passa. Getúlio e suas mãos frias. Amanhã vai fazer uma sopa.

Que tempo vai fazer amanhã?
Getulio atentou para a moça do tempo e não escutou uma palavra. O cabelo preso dela lembrou o de Clarice. O marido dela está viajando. Não o da mulher do tempo, o de Clarice. Foi visitar a mãe. Pobre, vai morrer. A mãe, não o marido de Clarice. Corno dura muito, sorri da própria esperteza. Sente remorso por brincar com a morte da mãe dele. Mãe é sagrada. Até mãe de corno. Ri novamente. Amanhã visitará Clarice. Vai levar um perfume. No Largo tem uma lojinha barata. Vai escolher um com cheiro de flor. Ele merece. Precisa passar aquela válvula da mulher de Higienópolis para o outro dia. Pensa que a mulher de Higienópolis tem cara de quem não presta. Conclui que nenhuma presta. Com exceção de Cátia. Nome de santa. Fica na dúvida é Santa Rita de Cátia ou “de Cássia”. Não importa. Tem certeza de que Cátia, Maria das Graças e a mãe dele prestam. Até a mãe do corno do marido da Clarice presta, pensa triunfante. Vai direto para Clarice, depois do trabalho do prédio da Vila Nova York. Nunca iria para Nova York, lá faz frio. Não gosta de frio. Pode dizer que o celular estava sem bateria. Tem que voltar logo. Clarice cozinha mal. Melhor jantar em casa. Tomara que tenha carne de panela. Getúlio não escutou a moça do tempo. Não levará o casaco. Mas, não passará frio.

Fim da previsão.